terça-feira, 17 de setembro de 2013

A insustentável complexidade da Síria

Por Antônio Henrique Lucena Silva*

Venenos e agentes químicos têm sido empregados em guerras desde o século XVIII em virtude dos desenvolvimentos da indústria química. O primeiro uso significativo ocorreu na Primeira Guerra Mundial quando os alemães, em 22 de abril de 1915, usaram gás cloro, de caráter asfixiante, em Ypres na Bélgica. Em 12 de julho de 1917 introduziram o gás mostarda no campo de batalha. Do outro lado do front, os aliados desenvolveram a Lewisite, outro gás tóxico, no final do conflito. 

O uso de armas químicas ficou no imaginário de europeus e seus soldados que buscaram banir o seu uso. Houve uma tentativa de vetar o uso dessas armas em 1925, através do protocolo de Genebra, para a proibição em guerra de gases asfixiantes, venenosos e elementos bacteriológicos. Apenas em 29 de abril de 1997 é que a Convenção de Armas Químicas ganha força internacional com a assinatura de 148 Estados, sem a participação da Síria. 

Na Segunda Guerra Mundial essa arma voltaria a ser empregada na Etiópia pelos italianos, japoneses na China e alemães no projeto de solução final aos judeus com Zyklon-B, um pesticida a base de ácido cianídrico, cloro e nitrogênio. Na segunda metade do século XX, durante a guerra Irã-Iraque, ocorrida na década de 1980, o presidente Saddam Hussein autorizou o uso de gás mostarda e tabun (a primeira geração de agente nervoso) nos iranianos. Outro ataque ocorreria, desta vez em território iraquiano, contra a vila curda de Halabja, que tinha como objetivo controlar uma rebelião, matando cerca de 10,000 civis, com uma mistura de gás mostarda e sarin. Este último foi utilizado no ataque do dia 21 de agosto que resultou na morte de 1,429 civis sírios e gerou o debate em torno de uma resposta enfática aos autores do ataque. 

Sobre a questão do conflito na Síria, Estados Unidos e França acusam o governo de Assad de ter usado gás sarin. O governo sírio nega e atribui aos rebeldes a responsabilidade pelo massacre de civis. Uma pergunta que é recorrente na questão Síria é: após 100 mil mortos na guerra civil porque os países Ocidentais interviriam, por razões humanitárias, depois de um massacre de 1.429 pessoas? A análise histórica da política das intervenções revela é que a decisão de entrar em conflito como a derrota dos otomanos e criação da Bulgária (1876-1878), a não intervenção no genocídio armênio (1915), invasão da Tchecoslováquia pela URSS (1968) e Afeganistão (1978-1988), intervenção dos Estados Unidos na República Dominicana (1965), Granada (1983), Somália (1993), a não intervenção em Ruanda (1994) e nas guerras civis no Congo (1991-2008), e os últimos conflitos nos Bálcãs - na Bósnia e Kosovo e, recentemente, na Líbia (2011) mostram que fatores geopolíticos e de esfera de influência contam mais do que populações. 

O caso da Síria revela uma enorme complexidade, porque múltiplos interesses estão em jogo gerando uma grande quantidade de variáveis em relação aos atores que participam direta ou indiretamente. Estados Unidos, Israel, Rússia, China, Irã, Arábia Saudita, Hezbollah, jihadistas e a Al-Qaeda atuam como elementos intervenientes no conflito. Seguindo a onda de protestos da Primavera Árabe, as grandes manifestações na Síria iniciam em 26 de janeiro de 2011. As manifestações tinham como bandeira a substituição da liderança do País por uma democrática, liberdade de impressa e uma nova legislação que suplantaria o estado de emergência em vigor desde 1962, que suprime direitos constitucionais. A desproporcionalidade do uso da força do exército sírio na repressão ao movimento, assim como as mortes provocadas na tentativa de sufocar a rebelião, catalisaram os protestos e, no final de 2011, desertores do exército regular formaram o Exército Livre Sírio. Os combates entre os oposicionistas e o governo ganham em magnitude e o conflito passa a atrair jihadistas de vários países, incluindo a Al-Qaeda. Em junho de 2012 as Nações Unidas afirmam que o país vive uma guerra civil. 

Barack Obama estabeleceu como “linha vermelha” o uso de armas químicas como barreira para um envolvimento estadunidense. Mesmo sem comprovação clara que Assad ordenou o uso do gás sarin, o presidente é pressionado por Democratas e Republicanos para intervir. Convém ressaltar que, apesar das constantes tensões, entre Síria e Israel, Bashar al-Assad é um inimigo conhecido. Podem-se identificar padrões de conduta entre Israel e Síria que nos fornecem evidências que ambos os países possuem um acordo “tácito”: Ameaças na fronteira das Colinas de Golã, transferências de armas para o Hezbollah e desenvolvimento de armas de destruição em massa, especialmente as nucleares, são intoleráveis. Caças israelenses destruíram o reator nuclear sírio antes da sua entrada em operação em 2007 durante a Operação Orchard. 

Recentemente, outros ataques à Damasco feitos com mísseis Popeye, a partir de submarinos israelenses, tiveram como objetivo cercear o envio de armas ao Hezbollah. O enfraquecimento de Assad e seu arsenal aumentaria a sensação de segurança dos israelenses. Já a Rússia possui interesses estratégicos no Mediterrâneo, especialmente na base naval de Tartus, mas as vendas de armas para a Síria se tornaram preponderantes. Desde os anos 2000, quando Assad ascendeu ao poder, o SIPRI contabilizou mais de 1 bilhão de dólares em vendas em armas para a Síria. A queda desse mercado seria um duro golpe na economia russa. Irã, China, Bielorússia, Rússia e Coreia do Norte exportaram juntos (2000-2012) aproximadamente 2 bilhões de dólares em armas, sem computar as transferências não contabilizadas. 

Para o Hezbollah, a derrocada do regime sírio representaria um sério revés de um fiel aliado e provedor de armas, cuja percepção é compartilhada por iranianos, que enxergam a Síria como um defensor em uma possível intervenção militar dos Estados Unidos e Israel no seu programa nuclear. A entrada do grupo libanês nas hostilidades, a pedido do presidente, que produziu uma alteração na balança da guerra em favor das forças regulares sírias, ressalta a importância da aliança. A Arábia Saudita é inimiga do regime de Teerã, forte aliado dos sírios, e percebe a queda de Bashar Al-Assad como um enfraquecimento dos iranianos em um cálculo da balança de poder na região e  ampliam o isolamento dos aiatolás. 

A queda do regime traria um vácuo de poder em um país em que os grupos étnicos minoritários que foram reprimidos pelos alauítas, grupo étnico-religioso que domina as estruturas políticas, entraria, provavelmente, em disputa pelo poder, em clima de revanchismo, com a participação da Al-Qaeda, que atua no País. Além do mais, o clima de “terra de ninguém” favoreceria o transbordamento de grupos armados para outras regiões, como ocorreu na migração de jihadistas da Líbia para o Mali. O conflito interno possui graves precedentes no Oriente Médio, como o Líbano de 1975 a 1990 e no Iraque pós Saddam Hussein. No caso do Líbano, os choques entre diversos grupos levaram muito tempo para se estabilizar. EUA e Rússia discutem o desarmamento sírio. Enquanto as potências internacionais disputam seus espaços, o povo sírio, que padece as consequências do embate, percebe que uma solução para o seu sofrimento está em um futuro distante. 

* Doutorando em Ciência Política/Estudos Estratégicos (UFF).