quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O que os clássicos da política podem nos dizer sobre a crise brasileira

Por Luiz Fernando Miranda*


Desde 2015 quando vieram a tona as contas do governo de Dilma Rousseff os brasileiros vêm sofrendo com uma poderosa crise econômica e política que tem se revelado em blocos de fatos que chocam a população e causam indignação e repúdio dos cidadãos em relação à política. O fenômeno da descrença na política é crescente e mundial. Ele diz respeito exatamente à desesperança dos cidadãos com escândalos de corrupção e até mesmo com o regime democrático. Amartya Sen, economista indiano e Prêmio Nobel de Economia de 1998 justifica tal descrença dizendo que quanto mais o tempo passa, mais frágeis ficam os argumentos de que a democracia nos trará justiça social e igualdade para todos. Já o teórico político italiano Norberto Bobbio nos fala que a democracia deixa, por esse motivo, promessas não cumpridas que frustram as pessoas comuns.

O objetivo deste artigo é mostrar dois pontos. Primeiro gostaria de argumentar que seguindo a linha de argumentação de determinados pensadores políticos poderemos entender, com mais facilidade, o atual comportamento dos políticos e o próprio funcionamento da política em si. O segundo ponto trata de mostrar o que é necessário fazer para se proteger da corrupção política.

De início faço uma afirmação para provocar o leitor: política não tem relação com moral! Encontrar políticos tentando se beneficiar dos seus cargos para ganhos pessoais ou de campanha é, portanto, algo esperado. A afirmação pode causar espanto num momento em que nunca se falou tanto em ética, mas já na renascença italiana Nicolau Maquiavel (1469-1527), com o objetivo de conseguir a paz para o seu reino e em busca da unificação da Itália, escreve o clássico livro ‘O Príncipe’. Nele, Maquiavel pensando no mundo como ele o enxergava cotidianamente, escreve uma espécie de guia dedicado a Lourenço de Médici mostrando-lhe como deveria agir para obter tal façanha. Para que isto ocorresse o Príncipe não deveria se furtar do uso de uma série de artifícios amorais para obter seu objetivo tais como preferir o medo dos súditos ao seu amor e se utilizar da ‘virtu’ e da ‘fortuna’ para galgar suas metas. É deste livro e baseado nestas justificativas que Maquiavel vai escrever que os fins justificam os meios. Aqui não cabe mais a coragem aristotélica. O que vai trazer benefícios ao príncipe seria o que Aristóteles veria como uma extrapolação da moderação, ou seja, a astúcia e atitudes ardis. O que se encontra como sugestão não me parece muito diferente das manobras do ex-deputado Eduardo Cunha para não sair da presidência da Câmara: artifícios de manipulação, chantagem e ameaças eram recomendados para um bom fim, no caso italiano.

Não menos polêmico e um século depois Thomas Hobbes (1588-1679), em meio às guerras de disputa do trono inglês, vai nos dizer, ao contrário de Rousseau, que o que se chamava de natureza humana era algo bastante negativo e que, portanto, o ‘homem é lobo do homem’, ou seja, o homem explora o próprio homem. Hobbes deduziu que a disputa entre os homens levada ao extremo geraria uma guerra de todos contra todos e faria com que o homem, por medo de uma morte violenta, criasse um pacto social onde se concede ao Soberano o monopólio legítimo da força. Assim se obteria a paz e a segurança para se viver.

Um século à frente, os fundadores da república americana, James Madison (1751-1836), Alexander Hamilton (1757-1804) e John Jay (1745-1829) tiveram a preocupação de criar mecanismos de controle institucional que suportassem a ganância do homem. Dessa maneira, sofisticando a teoria dos três poderes de Montesquieu (1689-1755) os Founding Fathers criaram os mecanismos de freios e contrapesos que são fiscalizações mútuas entre o Executivo, Legislativo e Judiciário de forma que um poder não se sobreponha ao outro. A necessidade de tal artifício institucional fica claro numa famosa frase de Madison: “Mas o que é o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos”.

No século XIX, os teóricos chamados de elitistas, Vilfredo Pareto (1848-1923), Gaetano Mosca (1858-1941) e Robert Michels (1877-1936) vão nos falar que o poder, na prática, não emana do povo, mas sim da disputa e circulação de elites políticas que ou se apoderam do governo ou ganham eleições. No mesmo século dois pensadores com visões de mundo bastante diferentes possuíam um ponto que podemos contar como comum: a desconfiança política com as ações dos homens. Karl Marx (1818-1883) vai nos dizer que história da humanidade tinha sido, até então, a exploração de classes dominantes sobre classes dominadas e Max Weber (1864-1920) iria afirmar, durante a experiência da fracassada República de Weimar, que o político profissional tem a vocação do demagogo.

Na segunda metade do século XX, fundindo teoria econômica com teoria política, estudiosos da chamada Escola da Escolha Racional, entre eles Mancur Olson, Anthony Downs e William Riker vão nos dizer que os políticos são auto-centrados, maximizadores de utilidade e se utilizam de lógica fiduciária para sobreviver politicamente. Mais atualmente, autores como Oliver Williamson, Daniel Gingerich, Arthur Luppia e Mathew McCubbins vão nos dizer que os políticos também buscam reeleição, são propensos a comportamento oportunista e usam sua maior capacidade de obter informação em relação aos eleitores para extrair vantagens em relação a estes.

Do século XV ao XXI podemos ver, portanto, autores diversos mas profundamente desconfiados com as ações dos políticos, preocupados em descrever empírica ou teoricamente modelos de explicação desse comportamento, e, nos dias atuais, voltados a melhoria do desenho institucional de modo que se evite o comportamento oportunista ou rent-seeking. Manifestações que cobram ética na política são, portanto, apenas manifestações ingênuas e pouco informadas da Realpolitik uma vez que os políticos são propensos a este comportamento oportunista e que usam da defasagem de conhecimento para enganar o eleitor.

Nossa tradição sebatianista[1] parece colocar o juiz Sérgio Moro como o ‘Grande Legislador’ de Rousseau. Alguém que aparece de algures, resolve o problema do pacto social e sai de cena. Esperança também ingênua. A atual crise política brasileira fez atores políticos adormecidos, como boa parte da população, tomarem posição. E a tomam, às vezes, de maneira que parte da elite intelectual não gostaria de ver, pois cobra soluções de maneira conservadora.

Todo esse caminho teórico que percorremos não teve o intuito de gerar desesperança ao leitor, pelo contrário, a ideia é mostrar que o caminho não é a consciência do voto ou a cobrança de ética na política. O caminho para construção de uma democracia sustentável está muito mais ligado à qualidade das regras institucionais e em mecanismos coletivos de cobrança para além do voto. A este respeito o cientista político argentino Guillermo O’Donnell mostrou num estudo como os mecanismos de accountability horizontal (entre os três poderes) se faziam necessários e fortes para compensar o problema ontológico da accountability horizontal (entre os representantes e os representados). O que soa mais esdrúxulo é que estamos passando por esta crise justamente porque as instituições estão funcionando! Em outras palavras, elas permitem, quando não fomentam, a predação pública que faz viger no país uma cleptocracia na prática. Novas regras de financiamento de campanha e de controle da fragmentação partidária parecem um movimento claro no sentido da melhoria da solidez institucional. Falta, ao país, grupos de pressão vindos da sociedade e que se organizem de forma mais eficiente e republicana para cobrar mudanças e ajustes. Falta, também, à população, conhecimento sobre nossas instituições. Tudo isto parece se dever a uma constituição que mistura características presidencialistas com parlamentaristas e pouco adequada à realidade brasileira, além de  nosso pouco tempo de amadurecimento democrático.

A saída para a crise política e para a corrupção reside, portanto, em mudanças institucionais que melhorem sua eficácia e as blindem de comportamentos oportunistas. A Operação Lava Jato que atingiu em cheio o governo de Dilma Rousseff e que agora atinge o governo Temer não me parece ser a Caixa de Pandora como quer a esquerda. Me parece mais um dedo na ferida. Uma vez que se tire o dedo, a ferida ainda estará lá. Trocando em miúdos, precisamos mudar as regras e não os políticos. Somente a melhoria institucional pode evitar com que oportunistas tenham chance de agir, e, assim, melhorarmos a qualidade de nossa representação.

* Doutor em Ciência Política (UFF). Pós-doutorando (PUC-Rio)

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[1] Crença mística, propagada em Portugal logo após o desaparecimento de D. Sebastião 1554-1578, segundo a qual este rei, como um novo messias, retornaria para levar o país a outros apogeus de glórias e conquistas.

Imagem: Reprodução http://jornaldapuc.vrc.puc-rio.br/