sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Assassinatos em massa, violência e controle de armas: algumas evidências internacionais

Por Antonio Henrique Lucena Silva*
Bruna Valença Bacelar**
Juliano Cesar Shishido Goes***

(Publicado originalmente em 'Vox Magister', em 22 de Agosto)

No último dia 12 de junho, os Estados Unidos sofreram um outro massacre realizado com armas de fogo automáticas, desta vez em uma boate frequentada por homossexuais, em Orlando. Este foi o maior assassinato do gênero na história do país, deixando 50 mortos, incluindo o responsável pelos tiros que foi alvejado pela polícia, e 53 feridos. O executor, Omar Mateen, de origem afegã, pouco antes do ato entrou em contato com a polícia e jurou fidelidade ao Estado Islâmico, o grupo assumiu a responsabilidade do ataque algumas horas depois. Apesar da declaração do pai e da esposa do atirador quanto a sua pouca religiosidade, o caso não foi considerado pela polícia norte-americana como um ato de terrorismo jihadista. Há também relatos de que Omar frequentava a boate que atacou, testemunhas alegam tê-lo visto diversas vezes no local, outra disse ter recebido mensagens dele em um aplicativo destinado ao público gay.

Independente das motivações, o ocorrido na boate Pulse, infelizmente, não é uma novidade para os Estados Unidos, já que ataques semelhantes são bastante recorrentes. Só em 2016, o site contabilizou 300 tiroteios em que 4 pessoas ou mais foram mortas ou feridas, inclusive o atirador, tendo ele sido ferido ou morto pela polícia ou cometido suicídio. Apenas este ano, já são 1.121 feridos e 401 mortos neste tipo de incidente, sem contar outros episódios perpetrados por armas de fogo.

Em se tratando deste assunto, outros ataques surgem à mente com facilidade devido ao choque que causaram em todo o mundo. O maior até então havia sido em 2007, na universidade Virginia Tech, em que 33 pessoas morreram (inclusive o autor do ataque) e 15 ficaram feridas; o ato foi executado por um aluno da universidade e teve a duração de 2 horas, iniciando nos dormitórios, onde duas pessoas foram mortas, e continuando em uma sala de aula. Outro ataque sempre lembrado foi o que aconteceu em 1999 e ficou conhecido como Massacre de Columbine, no qual dois adolescentes invadiram o Instituto Columbine com bombas caseiras e armas de fogo – como as bombas falharam, iniciaram um tiroteio que durou quase uma hora e matou 13 pessoas; o caso é icônico por ter sido televisionado ao vivo e, posteriormente, ter inspirado um filme ganhador do Oscar em 2003. Mais recentemente, um afroamericano, Micah Johnson, usou um fuzil para atacar 12 policiais e 2 civis, deixando 5 agentes mortos.

Os eventos elencados, bem como outros não descritos aqui, em sua época reacenderam as discussões a respeito do porte de armas, e, com o massacre de Orlando, o assunto se tornou tema mais uma vez. São muitos os questionamentos sobre as vantagens e desvantagens do porte de armas por civis e da sua comercialização. Portar armas aumenta a violência, dando margem para que outros massacres aconteçam? Menos armas significa mais segurança? Seria o caso apenas de enrijecer as vendas e aumentar a fiscalização para evitar que adolescentes, como os de Columbine, ou pessoas como Omar Mateen, investigado duas vezes pelo FBI por suspeitas de terrorismo em 2013 e 2014, tenham fácil acesso às armas? Buscaremos responder estas e outras perguntas elencando as políticas de desarmamento e de porte de armas em alguns países, além de analisar as características que tornam os Estados Unidos um caso específico, ou seja, um outlier .

Os americanos possuem um grande número de armas em circulação. As armas de fogo são uma das principais causas de mortes nos EUA. Comparada com outras formas de morte em países avançados, os dados mostram que os estadunidenses podem ser considerados um extreme outlier em relação a mortes violentas.

Gráfico 1:





A morte por armas de fogo nos EUA é comparável às mortes causadas por acidentes de carro, enquanto na França é o equivalente a morrer por hipotermia, acidente de avião na China, cair de uma escada na Nova Zelândia ou ser atingido por um raio no Japão (este país asiático proíbe totalmente o porte de armas). É importante frisar que os americanos não detêm o recorde de violência por armas de fogo no mundo. Na América Central, África e Oriente Médio, até mesmo no vizinho México, os números são mais altos, porém eles não estão no mesmo nível educacional, de expectativa de vida ou de PIB. Para os países da amostra do estudo de Quealy & Sanger-Katz, que levam em consideração as democracias desenvolvidas, os Estados Unidos são um caso específico.

Como mostramos no início, os americanos usam, com certa regularidade, armas de fogo de alta capacidade que levam a assassinatos em massa. Houve algumas tentativas de reformas por buscar frear ou dar limitações para que as pessoas comprem armas e empreendam esse tipo de ação, que as abordaremos ao longo do texto. Os oponentes do controle de armas argumentam que a difusão do uso de armas de fogo atua como uma medida de dissuasão de crimes, beneficiando a sociedade. Por outro lado, os que advogam por uma maior restrição discordam desta visão. Estes acreditam que a alta disponibilidade de armas é um estímulo ao crime, superando os efeitos dissuasivos que a posse de armas deveria proporcionar. Os cientistas sociais muitas vezes divergem sobre os estudos relacionados ao controle de armas.

Frederic Lemieux analisou os tiroteios em massa ocorridos em três períodos diferentes em relação à lei americana que restringiu o acesso a armas de assalto semiautomáticas e a carregadores considerados de grande capacidade (Federal Assault Weapons Ban – AWB): foram contabilizados 19 tiroteios em massa nos dez anos anteriores a sua vigência (1983 a 1994); nos dez anos de vigência do banimento (1995 a 2004) ocorreram 16 tiroteios em massa; e aconteceram 27 eventos desse tipo nos dez anos após a lei ter expirado (2005 a 2013). Mesmo salientando que os números são pequenos demais para se proceder a uma análise estatística confiável, o autor observa que há uma acentuada diferença entre os eventos ocorridos durante a vigência da referida lei e o período posterior ao fim do banimento.

Para Spitzer, um dos maiores problemas para que leis mais rígidas sejam aprovadas nos EUA é o lobby que as associações, como a NRA (National Rifle Association), fazem no congresso americano. O autor demonstra que a alta motivação do grupo e sua habilidade organizacional contribuem para a sua efetividade em barrar legislações e influenciar políticos (idem). Antes do referendo do desarmamento no Brasil, estrategistas políticos da NRA vieram ao país para assessorar grupos que eram contrários às restrições de uso de armas. A campanha do “NÃO” usou um playbook da associação do rifle americana que recomendava ressaltar a perda de direitos, caso o referendo fosse aprovado. A estratégia teve sucesso e 63,94% dos votantes optaram pelo “não” .

No caso do Brasil, o estudo realizado por Daniel Cerqueira mostra que menos armas, menos homicídios. Esse trabalho analisou o estado de São Paulo entre os anos de 2001 e 2007, período em que houve uma diminuição de 60,1% no número de homicídios, considerando os possíveis efeitos do Estatuto do Desarmamento (Lei no. 10.826, de 22 de dezembro de 2003) nessa redução.

Ainda de acordo com Cerqueira, nas localidades com maior crescimento da taxa de homicídios, é possível verificar também um aumento de armas de fogo, assim como, nos locais em que houve uma diminuição da taxa de homicídios, houve de igual maneira uma menor taxa de crescimento de armas. O autor verificou que um aumento de 1% na quantidade de armas nas cidades implica em um aumento de 2% no número de homicídios. Ele também conclui em seu estudo que uma maior disponibilidade de armas nas cidades não significa necessariamente uma diminuição nos crimes contra o patrimônio, ou seja, os dados por ele analisados não corroboram um dos argumentos mais utilizados pelos defensores do porte de arma pelos cidadãos: que os criminosos seriam dissuadidos de praticar crimes caso a vítima estivesse potencialmente armada.

É interessante mencionar que, também pela análise de Daniel Cerqueira, as taxas de homicídio, de tentativa de homicídio e de latrocínio tiveram uma queda consistente no período de 2001 a 2005 em São Paulo, entretanto, elas apresentaram comportamentos distintos nos dois anos anteriores ao Estatuto do Desarmamento em relação aos dois anos subsequentes a sua sanção. No primeiro período, essas taxas diminuíram 15,0%, 4,1% e 8,4%, respectivamente, enquanto que, no segundo período, essas taxas diminuíram, respectivamente, 38,4%, 20,3% e 43,2%.

Além disso, o Mapa da Violência 2015 estima que o Estatuto do Desarmamento evitou um total de 160.036 homicídios por armas de fogo no período de 2004 a 2012 no Brasil. Ou seja, caso o estatuto não tivesse sido aprovado, o número de homicídios no país seria muito maior do que é hoje. Em sua primeira edição no ano de 2005, o relatório situava o Brasil na segunda posição dos países em taxa de mortalidade por armas de fogo. Assim, considerando que na edição de 2015 o país ocupa agora o décimo primeiro lugar dentre noventa países analisados, além do fato de que a taxa de óbitos por armas de fogo em 100 mil pessoas de 2002 é praticamente a mesma da de 2012, pode-se afirmar que as políticas de desarmamento tiveram importante papel na “estagnação do crescimento descontrolado da mortalidade por armas de fogo”.

O caso australiano é o exemplo mais bem sucedido de side-effect no controle de assassinatos em massa e controle de violência. Em 1996, um atirador matou 32 pessoas com uma arma semiautomática, semelhante à usada em Orlando (tipo fuzil AR15) no dia 12 de junho. Os parlamentares da Austrália rapidamente aprovaram uma lei que restringia o uso de armas e outras determinações para reduzir o número de armas em circulação. A lei foi defendida pelo primeiro ministro John Howard, que esteve no poder de 1996 a 2007, pelo Partido Liberal. De acordo com o estudo de Andrew Leigh e Christine Neill, na década após a lei ser aprovada, a taxa de homicídios caiu em 59%, os suicídios com arma de fogo caíram 65%, sem paralelo de aumento em homicídios e suicídios que não usassem armas.

O trabalho também estimou que a recompra de 3.500 armas por 100.000 pessoas resultou em um declínio de 35-50% na taxa de homicídios, mas, como o número de homicídios na Austrália é normalmente baixo, essa evidência não é considerada estatisticamente significante. O que é considerado estatisticamente significante por Leigh e Neill é o declínio no índice de suicídios, no qual estimaram uma redução de 74%.

A pesquisa encabeçada por Santaella-Tenorio et al analisou e revisou as evidências de 130 estudos, em 10 países, com o escopo temporal de 1950 a 2014. Os autores afirmam que os seus achados não provam, conclusivamente, que as restrições do porte de armas reduzem as mortes provocadas com o uso de armas de fogo. Contudo, eles ressaltam que novas restrições na aquisição de armas tendem a ser seguidas por uma redução no número de mortes. Nesse trabalho, desenvolvido por professores da Universidade de Columbia e da Carolina do Norte, foram analisadas mudanças na legislação em países do mundo desenvolvido, como Estados Unidos, Austrália e Áustria, assim como nos países em desenvolvimento, especificamente o caso brasileiro e sul-africano.

Os autores (idem) argumentam que a “violência por armas” declinou após os países implementarem, de forma simultânea, múltiplas restrições às armas, incluindo armas de assalto (tipo AR-15, AK-47), para a população. De forma geral, os países aprovaram leis que possuem algumas características comuns: 1) banimento de armas que sejam “muito poderosas”, como os rifles automáticos mencionados previamente; 2) todos implementaram a checagem de antecedentes criminais; 3) licenças e permissões passaram a ser necessárias para se possuir porte de armas. Aprovada no ano 2000, a lei “Firearm Control Act” da África do Sul continha todas essas medidas.

Santaella-Tenorio et al também observaram que as regras sobre estocagem de armas tiveram impacto positivo na redução de certos tipos de morte. Os autores identificaram que havia uma associação com taxas menores de homicídios entre parceiros e mortes não intencionais que envolviam crianças por causa das armas estocadas (idem). Eles também analisaram estudos que são pró-armas, como o de Gary Kleck (Florida´s State) e do pesquisador independente, e colunista da Fox News, John Lott. Estudiosos que reexaminaram as conclusões deles, algumas vezes usando o mesmo tipo de dados, geralmente atingiram resultados opostos ao que eles advogam em seus trabalhos.

De certa forma, os estudos não são conclusivos sobre algumas questões, mas trazem fortes evidências: reduzir o acesso às armas também reduz, de forma geral, os suicídios. Como este triste ato é dado de forma impulsiva, as armas são mais eficientes em finalizar a ação, enquanto as pílulas, não. Muitas vezes as pessoas se arrependem dos seus atos (quando tentam sem ser com o uso de armas) e mudam a postura em busca de tratamento. Os trabalhos que buscaram ser isentos, nem pró-armas nem contra elas, trouxeram dados variados que ajudaram a iluminar o debate sobre as restrições ao uso de armas. A maioria dos estudos não é conclusivo, devido as limitações de uma política pública como essa, mas, de forma geral, os trabalhos convergiram para a ideia que as mortes por arma de fogo diminuíram após a implementação de leis que restringiam o acesso a elas. Podemos afirmar que as evidências são sugestivas e o debate ainda está longe de acabar.

* Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor de Relações Internacionais da Faculdade Damas da Instrução Cristã. 

** Graduanda em Relações Internacionais pela Faculdade Damas da Instrução Cristã.

*** Graduando em Relações Internacionais pela Faculdade Damas da Instrução Cristã.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Congresso e Eleições: a incoerência partidária

Por Leon Victor de Queiroz*

(Publicado originalmente em 'O Estado de São Paulo', em 12 de Agosto) - Texto do Blog 'Movimento Consciente'

Os partidos políticos no Brasil não são verticalizados, o que significa que as alianças governativas, formadas no âmbito do Congresso Nacional, não necessariamente se reproduzirão nas eleições locais. Eleições sempre se dão em arenas diferentes. Partidos são instituições e, como todas elas, têm atores e cálculos estratégicos – sendo um dos principais objetivos a sobrevivência política. Todo partido político busca otimizar suas chances de manter-se relevante no jogo. Entretanto, se de um lado há um conjunto de cálculos estratégicos na busca da sobrevivência, do outro há a coerência dos discursos. Os mais radicais têm mais tendências a incorrer em incoerências e cair em contradição.

O PSOL, por exemplo, protagonizou em âmbito nacional uma brutal incoerência. O diretório do Rio de Janeiro permitiu que um militar, um dos líderes da “greve” dos bombeiros em 2011, se candidatasse a deputado federal. A estratégia eleitoral era a de aproveitar a notoriedade do bombeiro e revertê-la em votos, o que deu certo. Ele foi eleito com quase 50 mil votos (cerca de 0,65% dos votos válidos fluminenses). Para os dirigentes do partido, a militância no movimento grevista teria mais destaque do que o fato de o candidato ser religioso e militar (vale lembrar que boa parte do PSOL veio do PT, partido cujos principais expoentes lutaram contra o regime militar).

Na Câmara dos Deputados, o parlamentar passou a agir de acordo com os seus princípios e a sua consciência, o que é ruim para o sistema partidário, mas uma prática adotada por quase todos os legisladores. O militar psolista, por exemplo, propôs uma PEC para retirar a palavra “povo” do trecho do preâmbulo constitucional que estabelece que todo o poder emana do povo e substituí-la por Deus. Logo o alarme de incêndio do partido acendeu, gerando um movimento para expulsar o militar-religioso do seio do socialismo e da liberdade. Na executiva nacional do partido, ainda houve um membro que votou contra a expulsão, consumada por 53 votos. Porém, a executiva decidiu não pleitear o mandato, embora o parlamentar tenha infringido as diretrizes do partido.

O PSOL de Pernambuco, também por meio do cálculo da estratégia eleitoral, coligou-se em 2014 ao PMN, partido que nacionalmente estava coligado ao PSDB para a eleição presidencial. Durante a propaganda televisiva da chapa proporcional, o PMN inclusive usou o símbolo do PSDB em função da aliança nacional. O fato causou mal estar na militância. Porém, ao final, o PSOL conseguiu eleger seu principal líder, o primeiro deputado estadual do partido em Pernambuco que, nestas eleições, disputa a prefeitura do Recife e cuja estratégia é a de fortalecer a chapa proporcional e eleger pelo menos um (a) vereador (a).

O caso que talvez seja o mais incoerente é o do PC do B. Fiel aliado do PT e seu principal defensor histórico, os comunistas montaram alianças com partidos que votaram maciçamente a favor do impeachment, que eles chamam de golpe, para não correr o risco de perder espaço no poder. Ora, é perfeitamente inteligível que o PC do B busque um projeto próprio, independente do PT, e que forme alianças com outros partidos, mas fica difícil defender a tese do golpe se candidatando, justamente, de braços dados com aqueles vinculados aos partidos golpistas.

Estas incoerências, além das próprias inadequações dos nomes dos partidos, confundem o eleitor e minam a credibilidade dos discursos. Em breve, com as eleições municipais, o eleitor terá dificuldade em se identificar com os partidos quando colocadas essas questões mais institucionalizadas. O componente local irá se sobrepor à coerência discursiva e à própria atuação dos partidos no Congresso Nacional. Condorcet é que estava certo: quando há atores com preferências intransitivas (intransigentes), a saída é mudar de preferência para não impedir a decisão. Mas não precisa ser de forma tão incoerente assim.

* Doutor em Ciência Política (UFPE). Professor adjunto (UFCG).

Imagem: Reprodução http://www.portalconscienciapolitica.com.br/