quarta-feira, 6 de maio de 2015

Novas constituições e velhos problemas

Por Pedro Capra* e André Amud Botelho**

O Chile da presidenta socialista Michelle Bachelet anunciou na última sexta-feira, 29 de abril de 2015, que irá convocar uma constituinte para substituir a constituição atual, em vigência desde 1980, auge da ditadura militar de Augusto Pinochet. É verdade que essa foi uma promessa de campanha e em nada surpreende sua decisão. Entretanto, dos 10 países da América do Sul, apenas o Uruguai tem uma Constituição mais antiga, aprovada em 1967, antes do regime militar que controlou o país entre 1973 e 1985.[1]

Ao longo de seus processos de redemocratização, vimos novas constituições emergirem no Brasil, em 1988, Paraguai, em 1992, Argentina, em 1994 (revisão à constituição de 1853), Peru, em 1993, e Bolívia, em 1994 (constituição de 1967 com reformas), com o objetivo de substituir cartas ultrapassadas e com discutíveis valores cidadãos. Países que não viveram os anos da Operação Condor [2] e das ditaduras violentas, também introduziram novas constituições. É o caso de Colômbia, em 1991, e Venezuela, em 1999.  A pergunta que surge é: por que o Chile, último país da região a se redemocratizar, é também o último a enterrar a Constituição de seu período autoritário?[3]

Em dezembro de 2006, após a morte de Pinochet, o cientista político chileno Manuel Antonio Garretón dava algumas pistas ao afirmar que “um país que mantém como constituição um texto imposto por Pinochet não está reconciliado com seu passado” mas se enganava ao sugerir que “sem Pinochet, abre-se a oportunidade de romper a institucionalidade que foi inteiramente gerada na ditadura, partindo da Constituição. Com sua morte, desaparece o personagem simbólico que permitia que a institucionalidade mantivesse sua referência"[4]. Para tanto, seria necessário um profundo confronto com o passado, a desconstrução de símbolos e mitos que sobrevivem à morte dos atores da história, além do julgamento a respeito dos crimes cometidos pelo Estado.

Esse processo é importantíssimo para que o passado recente sul-americano siga em direção à tão propagada reconciliação. A Argentina deu passo importante nesse sentido, tendo criado a Comissão Nacional Sobre Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) logo após a redemocratização (Governo Alfonsin, dezembro de 1983) e transformado o antigo centro de tortura, Escola de Mecânica da Armada (ESMA), em um marcante espaço de memória e direitos humanos.[5] O Brasil, ainda tímido, busca através de sua Comissão da Verdade [6] informações necessárias para os processos de reconciliação e transição democrática. Desde 2001, o Brasil conta com a estrutura e os trabalhos da Comissão de Anistia Política que aprovou mais de 40 mil processos de reparação a perseguidos pela ditadura civil-militar brasileira.

O Chile apenas fingiu iniciar um processo de esclarecimento dos crimes de sua ditadura, ainda em 1991, com o ainda poderoso senador vitalício, Augusto Pinochet, e seus aliados observando tudo. Segundo Bachelet, é importante um processo constituinte aberto à cidadania e que resulte numa "carta fundamental, plenamente democrática e cidadã"[7]. De fato, essa foi a principal característica das constituições aprovadas na região ao longo das três últimas décadas com o destaque a mecanismos participativos como referendos e iniciativas populares. Para um processo completo, é importante buscar a verdade além de criar instituições cidadãs que forjem e garantam o espaço público democrático. Que esse processo constituinte siga nessa direção.

Pesquisador visitante - Universität Zürich. Doutorando em Ciência Política - UNICAMP. 
** Antropólogo do Instituto Brasileiro de Museus - IBRAM. Mestre em Antropologia - UFF.

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[1] Um interessante detalhe: uma Constituição apresentada pelos militares uruguaios num referendo popular foi rejeitada em novembro de 1980.
[2] A Operação Condor foi uma associação constituída na década de 1970 que permitiu a repressão aos opositores dos regimes militares vigentes além de fronteiras nacionais. Sua existência foi confirmada com a descoberta, em 1992, do Archivo del Horror, no Paraguai. O filme de Roberto Mader, Condor, de 2007, retrata bem os meandros da operação.
[3] Essa não é uma data qualquer. O golpe militar dado pelo Gal Pinochet aconteceu em 11 de setembro de 1973, assim como o assassinato do presidente democraticamente eleito, o socialista Salvador Allende.
[6] A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei n. 12.528/2011. Seus trabalhos iniciaram-se em maio de 2012.