segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Novas instâncias de mediação e seus desafios: o Conselho Participativo Municipal de São Paulo

Por Rony Coelho*

No dia 08 de dezembro de 2013, houve a eleição do Conselho Participativo Municipal (CPM) de São Paulo. A posse ocorreu no sábado, 25 de janeiro, dia em que a maior cidade do país, com aproximadamente 11 milhões de habitantes, completou 460 anos. Para muitos, dos mais distintos espectros políticos, esse tipo de eleição e de mecanismo não passam de um placebo, de um engodo. Embora não corresponda às nossas expectativas (e o que, em se tratando de política, de fato corresponde não é mesmo?) e ainda esteja muito longe de qualquer ideal, parece interessante destacar alguns apontamentos sobre o processo de criação e eleição do conselho.

1. O referido Conselho estava previsto, desde 1990, na lei orgânica do município e nunca havia saído do papel. Essa será sua primeira gestão. É válido lembrar que os conselhos no Brasil foram concebidos por diversos movimentos sociais e segmentos voltados a causas populares no decorrer das décadas de 1970-80 na luta pela redemocratização do país.

2. Trata-se de um conselho consultivo, isto é, não tem poder de decisão. Todavia, este é um órgão reconhecido pelo poder público e dentre as atribuições dos conselheiros, que exercerão mandato não remunerado (voluntário) por dois anos, está a de acompanhar e de fiscalizar a execução do Orçamento e do Plano de Metas no âmbito do território das subprefeituras, bem como a evolução dos indicadores de desempenho dos serviços públicos regionais. Os conselheiros também terão autonomia para obter informações oficiais e contestar atos da gestão nas subprefeituras, além de poder convocar o próprio prefeito para prestar esclarecimentos. O CPM ainda participará da definição das obras a serem executadas pelas subprefeituras, além de indicar um conselheiro de cada distrito para compor o futuro Conselho de Planejamento e Orçamento Participativo.

3. As eleições para o CPM ocorreram nas 32 subprefeituras da cidade, das quais fazem partes os 96 distritos municipais. O Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP) forneceu urnas eletrônicas e suporte técnico para sua realização. Cada subprefeitura elegeu determinado número de conselheiros (entre o mínimo de 19 e o máximo de 51), por distrito, de acordo com a distribuição geográfica da população. Por exemplo, no distrito de Grajaú, subprefeitura de Socorro, elegeu-se 30 conselheiros, ao passo que nos distritos do Butantã e do Morumbi, subprefeitura do Butantã, elegeu-se 5 conselheiros em cada um deles. Na média, foi eleito um representante para cada 10 mil cidadãos. No total, foram eleitos 1.113 conselheiros divididos proporcionalmente em cada região. Vale registrar, de modo ilustrativo, que em São Paulo são eleitos 55 vereadores, aproximadamente um para cada 200 mil cidadãos.

4. Aproximadamente 120 mil eleitores, 1,4% do total (8,6 milhões), compareceram às urnas. Poderiam votar todos aqueles regularizados com a justiça eleitoral. Com o voto facultativo e secreto, cada cidadão poderia votar em até cinco candidatos. Sendo assim, foram computados aproximadamente 600 mil votos. Para alguns, especialmente para os próprios organizadores do pleito e mesmo para alguns “especialistas”, houve “baixa adesão” ou “participação”. Cabem as questões: baixa comparada ao que? Às nossas expectativas ou às tradicionais eleições obrigatórias? O que de fato representa a participação voluntária de 120 mil pessoas num pleito para escolher conselheiros?

5. Como atestado por vários meios de comunicação e mesmo por candidatos e eleitores, houve falta de divulgação. Além desse problema, muitos eleitores foram designados a votar em escolas situadas em outras subprefeituras que não as da área de suas residências. Esses fatores certamente prejudicaram a eleição. Nesse mesmo sentido, outro fator a ser elencado é que houve mudanças de regras no meio do processo. Inicialmente os eleitores votariam apenas em candidatos dos seus próprios distritos. Posteriormente, estabeleceu-se que se poderia votar em até cinco candidatos da subprefeitura. No final, após outra alteração, os eleitores puderam votar em candidatos de quaisquer subprefeituras. A prefeitura de São Paulo justificou tais mudanças alegando que estaria seguindo orientações do TRE-SP. A oposição ao governo da capital (PSDB e PPS) entrou com pedido de anulação do pleito por entender que isso a prejudicaria. Note que se questiona a mudança de regras e não o conselho em si. Isso sugere que mesmo a oposição reconhece publicamente o órgão criado. Na verdade, o Conselho, que já estava previsto na lei orgânica do município, originou-se a partir de uma emenda de um vereador da própria oposição (PSD) proposto pouco antes das manifestações de junho. Em 1º de agosto foi lançado por Haddad.

6. O número de candidatos ao conselho foi de 2.855. Em todos os distritos, o número de candidatos foi maior do que o de vagas. Nos bairros da periferia, a média candidato/vaga foi maior do que nos bairros da região central. A subprefeitura com mais candidatos inscritos, por exemplo, foi a de M'Boi Mirim (zona sul), com 154 interessados (aproximadamente de três candidatos por vaga). Como pré-requisito para candidatar-se, o interessado deveria comprovar representatividade por meio da apresentação de uma lista com no mínimo 100 assinaturas de apoiadores; não ocupar cargo no poder público; e não ter mandato político nas esferas municipal, estadual ou federal.

7. Após a eleição, o jornal O Estado de São Paulo destacou que candidatos do PT tiveram maior votação em quase metade dos conselhos (43%). E que “dos 96 primeiros colocados no domingo, 41 são filiados ao partido do prefeito”. Apenas quatro entre esses são do PSDB. Aparentemente, esses números isolados, isto é, sem estar inseridos em seu universo, não dizem quase nada. O jornal contribuiria mais se nos informasse quantos foram os filiados eleitos para as 1.113 vagas disponíveis. Ainda não tivemos acesso a estes dados. Mas mesmo em posse deles, uma vez que não estamos levando em conta a trajetória dos candidatos, caberia questionar se há algo de espúrio nessa prática. Enfim, esse não é um questionamento ingênuo. Melhor do que se deixar levar por uma possível manipulação dos números. Mas, além do que informou o jornal, sabemos também que foram eleitos, por exemplo, quatro militantes da Associação dos Trabalhadores Sem Teto da Zona Oeste e Noroeste, que promoveu, em 2013, protestos contra o governador paulista, Geraldo Alckmin (PSDB), e contra Haddad (PT), nos primeiros meses de sua gestão. A candidata que obteve maior votação entre todos é uma liderança do movimento sem-teto. Na verdade, com uma simples consulta na internet é possível perceber que o universo de candidatos foi bastante heterogêneo, embora ainda não seja possível saber de forma precisa o perfil dos eleitos. Havia candidatos de diversas pastorais (da saúde, da fé e política etc.), de diversas associações comunitárias e de moradores (associação colina de São Francisco e Amovilas, o líder comunitário do Parque Cocaia), candidatos ligados à Agenda 21; além de outros de diversos movimentos: Movimento Boa Praça, Instituto Kairós; militantes da cultura, etc. Também se percebe vários candidatos com formação de nível superior em diversas áreas, inclusive, por exemplo, com mestrado na FAU-USP.

Essas são apenas algumas notas que têm o intuito de dar uma dimensão da complexidade do processo e permita um olhar mais ponderado sobre ele. Mas, para alguns, como disparou, por exemplo, Waldemar Rossi : “todos esses ‘ingredientes políticos’ (para ele especialmente os do ponto 5) transformam os futuros Conselhos Participativos em meros prolongamentos de políticos tradicionais, particularmente de vereadores mancomunados com o poder”. Isso pode até ser verdade, em parte. No jogo político, o risco de aparelhamento quase sempre é real e – diga-se de passagem – em quase toda e qualquer situação. Mas, quem sabe, não pode ser verossímil também que estejamos diante de um processo (dialético, lento, com idas e vindas, com avanços e retrocessos) de formação de novas instâncias de mediação, de representação, com os desafios de lidar com todos os meandros e facetas da política, conforme chama atenção também Raquel Rolnik?

Vale lembrar, como fora veiculado também pelo blog do Luis Nassif, que provavelmente em nenhum lugar do mundo houve eleições como essas, com as virtudes e os vícios que disso possa decorrer. À propósito, como fora ressaltado em outro post deste autor neste blog - e o que é destacado por diversos especialistas, embora não se reconheça enquanto senso comum - em nenhum lugar há um cenário como o do Brasil no que diz respeito à configuração do que podemos chamar de instituições participativas (conselhos, orçamentos participativos, conferências nacionais, comissão de legislação participativa etc.). Assim, antes de jogar fora o bebê junto com a água do banho, talvez seja mais prudente atentar aos desafios que a democracia brasileira nos coloca.

* Doutorando em Ciência Política da UNICAMP.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Habemus planum: considerações políticas, tecnológicas e econômicas sobre a escolha do Gripen

Por Antônio Henrique Lucena Silva*

Desde o início da competição do Programa FX-2, o caça Gripen foi preferido pela corrente majoritária da Força Aérea Brasileira (FAB). Aeronave de excelente performance e de baixo custo de manutenção ele se adequa aos parcos recursos que as forças armadas possuem para se manter. Em conversas com militares das três armas sobre o processo de escolha do caça, no Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, e nas Escolas (EGN – Escola de Guerra Naval, UNIFA – Universidade da Força Aérea e ECEME – Escola de Comando e Estado-Maior do Exército), identifiquei três correntes de defensores de cada avião concorrente. Uma delas defendia a manutenção da continuidade doutrinária francesa: a Força Aérea utilizou os Mirage III, Mirage 2000 e o Rafale seria uma opção natural. Operamos o porta-aviões São Paulo (ex-Foch, da Marinha Francesa) que possui capacidade de emprego dos Rafale. Nesse sentido, a opção pelo caça francês era óbvia. Outra corrente, essa que pode ser classificada de “pragmática”, defendia os F-18 Super Hornet. Para esses militares, não existe transferência efetiva de tecnologia e possuir uma aeronave americana, com bom histórico de uso em guerras, seria benéfico para a Força Aérea. A terceira corrente pode ser classificada como “desenvolvimentista”. Os suecos ofereciam uma parceria no Gripen NG. Dentro dos marcos da Estratégia Nacional de Defesa (END, publicada em 2008) e do Livro Branco de Defesa Nacional (2012), o avião sueco é o que se adequa às nossas necessidades de elevar a indústria de defesa do Brasil a um novo patamar. Toda transferência internacional de armas é uma associação de longo prazo entre país comprador e fornecedor do material bélico. Assim, não apenas questões de cunho operacional/tático são levadas em consideração.

Politicamente, a compra do caça F-18 da americana Boeing, preferido por alguns militares por ser sucesso em combate em várias guerras e farta experiência de desenvolvimento, ficou inviável após os escândalos de espionagem da NSA. O fato da própria Presidente Dilma Rousseff e companhias brasileiras como a Petrobras terem sido alvo da espionagem prejudicaram a escolha do avião, cuja vitória estava prevista para ser anunciada na visita de Estado da Presidente a Washington, posteriormente cancelada devido aos escândalos. Além do mais, deve ter em mente que a Estratégia Nacional de Defesa considera que toda a "compra" de material bélico será uma "parceria". Nesse sentido, a Boeing não seria a melhor candidata pelo histórico de cerceamento tecnológico que o governo americano faz ao nosso país. O próprio programa CBERS (satélites de análise de recursos terrestres), em parceria com a China, sofreu vários atrasos no seu desenvolvimento porque o ITAR (International Traffic in Arms Regulations), órgão americano, vetou a venda que componentes para os satélites, obrigando Brasil e China a desenvolverem esses componentes. A FAB ficou irritada também porque houve outro episódio de cerceamento no caso do míssil MAR-1 (anti-radiação, arma importante para destruir radares) fazendo com que os pesquisadores da arma desenvolvessem um novo sistema para o seeker. No passado, os americanos vetaram a venda de equipamento brasileiro devido a interesses comerciais e políticos. Dois eventos são dignos de nota: o primeiro ocorreu com o carro de combate Osório, fabricado pela Engesa, era ofertado para a Arábia Saudita. Tendo se saído melhor em testes no deserto para a monarquia daquele país, o Osório superou o Abrams (EUA) e seus concorrentes AMX (França) e Challenger (Reino Unido). O ataque político estadunidense inviabilizou a compra e, afundada em dívidas, a Engesa faliu. O segundo, mais recente, foi o veto à venda de Super Tucanos à Venezuela em 2005. A escolha do avião de contra-insurgência da Embraer pelos Estados Unidos em 2013, para equipar a Força Aérea Afegã, representou um novo marco que sinalizaria em novas relações militares internacionais com os americanos, mas que foi anulada em seguida pela espionagem acima mencionada.

O Rafale é o avião mais "independente" em termos de tecnologia, porque é quase todo fabricado na França. Por outro lado, é um avião muito caro de ser mantido, com custos proibitivos de aquisição. A aeronave, que teve muitos problemas no seu desenvolvimento, foi diminuindo as dificuldades táticas e operacionais na guerra do Afeganistão e, mais recentemente, na Líbia. A cooperação com a França é de longa data, que inclui os Mirages adquiridos na década de 1970 (os países latino-americanos sofreram embargos de armas pelo Presidente Jimmy Carter, por isso os equipamentos franceses foram uma opção), os submarinos e a compra de helicópteros EC-725 de transporte para as três armas. A escolha do Rafale poderia aprofundar a dependência francesa o que, em termos estratégicos, pode não ser bom. As lições da Guerra das Malvinas (1982), quando a França interrompeu a entrega de aeronaves Super Étendard e mísseis Exocet para a Argentina, por ordem de Margaret Thatcher, ainda continuam vivas. O Brasil também se irritou com a França porque ela obstaculizou a eleição de Roberto Azevedo para a OMC demonstrando limites da parceria estratégica entre os países.

A Suécia tem se revelado um novo aliado estratégico de peso. Criou o centro de pesquisa sueco-brasileiro para desenvolvimento de tecnologias, além de oferecer o Gripen como um "parceiro" de desenvolvimento. Proposta interessante para a nossa indústria de defesa e no ganho de autonomia de aeronaves de caça. Convém ressaltar que o Gripen é bem avaliado pela República Tcheca, Tailândia, Suécia, Empire Test Pilots (Reino Unido) e África do Sul. Esta última têm ressaltado as vantagens de cooperação com os suecos e que os acordos de transferência de know-how tem sido bem sucedidos. O míssil A-Darter (ar-ar de 5ª geração) que entrará em serviço, fruto da cooperação tecnológica Brasil-África do Sul, será equipado nos Gripens sul-africanos, o que facilita a integração com o Gripen brasileiro. Embraer e SAAB, que vão cooperar na fabricação do caça, têm congruência na política de integração de sistemas nos seus produtos. O desenvolvimento do avião de ataque AMX por Brasil e Itália, na década de 1980 e em operação na FAB, é um exemplo de parcerias internacionais que trouxeram frutos para a indústria do País. No mais, a escolha do avião depois de tanto tempo é importante para a retomada da operacionalidade da FAB. Atenta a esse processo, a Suécia deverá fazer um leasing de caças da sua Real Força Aérea para o Brasil até que os nossos cheguem, a partir de 2018, para garantir a defesa aérea do Brasil durante a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Por ser uma aeronave dentro dos padrões da OTAN, o Gripen facilitará ao Brasil a participação em operações aéreas conjuntas. Um dos pontos contrários ao avião é que ele utiliza muitos componentes estrangeiros, como o motor, que é da General Eletric (empresa americana). Por outro lado, é importante frisar que a cadeia de fornecimento da indústria global de defesa é horizontalizada, ou seja, é praticamente impossível um aeronave que não tenha, pelo menos, alguns componentes estrangeiros.

Com a decisão da compra dos caças, Dilma Rousseff agrada aos militares e diminui o mal estar de alguns atritos ocorridos com os militares. Episódios como que causaram irritação na caserna como a Comissão da Verdade, classificada como tendenciosa, porque não investigaria os crimes da “esquerda” e o caso Dalton. Com a escolha do Gripen NG para a FAB, Rousseff e Amorim sinalizam que possíveis divergências se encontram no passado e, para a Presidente, em particular, que a Defesa Nacional será um tema de Estado.

* Doutorando em Ciência Política/Estudos Estratégicos (UFF).