quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O PSB e a representação política

Por Cláudio André de Souza*

A representação política, enquanto traço marcante da política contemporânea, ajuda-nos a compreender a saída do PSB da base do governo, uma vez que se trata de uma movimentação partidária preocupada em reorientar o partido no intuito de construir novas relações de representação no terreno eleitoral.

Nesse sentido, o objetivo é a candidatura presidencial de Eduardo Campos, conciliando propostas valorizadas pelo eleitorado do PT e PSDB. Este será o caminho mais difícil, pois, até aqui, pouco sabemos quais são as concordâncias e discordâncias que a diferenciaria dos seus possíveis adversários eleitorais. Ao partido, neste momento, é crucial revelar seus propósitos.

Tem sido o PT o partido que trouxe de modo intenso a questão social como bandeira de representação política, mas que por força do realismo eleitoral pôs em suspensão reformas estruturais antes frequentes em seus programas partidários. Já o PSDB parece incapaz de abandonar um passado neoliberal de crença no mercado em detrimento da igualdade, como tem buscado os governos latino-americanos. Na verdade, os tucanos se afastam da questão social como primado do desenvolvimento, diferente do seu adversário que estabeleceu um conjunto de políticas sociais legitimadas pelos eleitores, o que ajuda a explicar o seu êxito eleitoral nas últimas eleições.

Talvez, o grande desafio do PSB seja a construção de um projeto político que não somente seduza o eleitorado destes dois partidos, mas que realinhe discussões importantes em uma agenda mais ampla de desenvolvimento social, em parte como fez a sociedade civil ao abrir um novo ciclo de mobilizações políticas no país.

Como já dito, a atitude do PSB visa verdadeiramente as eleições, tendo a chance de reconectar forças sociais a uma agenda de reformas importantes que surgem como desejáveis entre os eleitores, já que a radicalização destas reformas anda fora do eixo de representação por parte do lulismo e dos demais oposicionistas. Esta empreitada exige virtú e fortuna do PSB, para além de negociações intensas que têm sido realizadas dentro e fora da base governista, visando principalmente a construção de palanques nas eleições estaduais.

* Doutorando em Ciências Sociais (UFBA) e professor de Ciência Política da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). E-mail: claudioandre.cp@gmail.com

terça-feira, 17 de setembro de 2013

A insustentável complexidade da Síria

Por Antônio Henrique Lucena Silva*

Venenos e agentes químicos têm sido empregados em guerras desde o século XVIII em virtude dos desenvolvimentos da indústria química. O primeiro uso significativo ocorreu na Primeira Guerra Mundial quando os alemães, em 22 de abril de 1915, usaram gás cloro, de caráter asfixiante, em Ypres na Bélgica. Em 12 de julho de 1917 introduziram o gás mostarda no campo de batalha. Do outro lado do front, os aliados desenvolveram a Lewisite, outro gás tóxico, no final do conflito. 

O uso de armas químicas ficou no imaginário de europeus e seus soldados que buscaram banir o seu uso. Houve uma tentativa de vetar o uso dessas armas em 1925, através do protocolo de Genebra, para a proibição em guerra de gases asfixiantes, venenosos e elementos bacteriológicos. Apenas em 29 de abril de 1997 é que a Convenção de Armas Químicas ganha força internacional com a assinatura de 148 Estados, sem a participação da Síria. 

Na Segunda Guerra Mundial essa arma voltaria a ser empregada na Etiópia pelos italianos, japoneses na China e alemães no projeto de solução final aos judeus com Zyklon-B, um pesticida a base de ácido cianídrico, cloro e nitrogênio. Na segunda metade do século XX, durante a guerra Irã-Iraque, ocorrida na década de 1980, o presidente Saddam Hussein autorizou o uso de gás mostarda e tabun (a primeira geração de agente nervoso) nos iranianos. Outro ataque ocorreria, desta vez em território iraquiano, contra a vila curda de Halabja, que tinha como objetivo controlar uma rebelião, matando cerca de 10,000 civis, com uma mistura de gás mostarda e sarin. Este último foi utilizado no ataque do dia 21 de agosto que resultou na morte de 1,429 civis sírios e gerou o debate em torno de uma resposta enfática aos autores do ataque. 

Sobre a questão do conflito na Síria, Estados Unidos e França acusam o governo de Assad de ter usado gás sarin. O governo sírio nega e atribui aos rebeldes a responsabilidade pelo massacre de civis. Uma pergunta que é recorrente na questão Síria é: após 100 mil mortos na guerra civil porque os países Ocidentais interviriam, por razões humanitárias, depois de um massacre de 1.429 pessoas? A análise histórica da política das intervenções revela é que a decisão de entrar em conflito como a derrota dos otomanos e criação da Bulgária (1876-1878), a não intervenção no genocídio armênio (1915), invasão da Tchecoslováquia pela URSS (1968) e Afeganistão (1978-1988), intervenção dos Estados Unidos na República Dominicana (1965), Granada (1983), Somália (1993), a não intervenção em Ruanda (1994) e nas guerras civis no Congo (1991-2008), e os últimos conflitos nos Bálcãs - na Bósnia e Kosovo e, recentemente, na Líbia (2011) mostram que fatores geopolíticos e de esfera de influência contam mais do que populações. 

O caso da Síria revela uma enorme complexidade, porque múltiplos interesses estão em jogo gerando uma grande quantidade de variáveis em relação aos atores que participam direta ou indiretamente. Estados Unidos, Israel, Rússia, China, Irã, Arábia Saudita, Hezbollah, jihadistas e a Al-Qaeda atuam como elementos intervenientes no conflito. Seguindo a onda de protestos da Primavera Árabe, as grandes manifestações na Síria iniciam em 26 de janeiro de 2011. As manifestações tinham como bandeira a substituição da liderança do País por uma democrática, liberdade de impressa e uma nova legislação que suplantaria o estado de emergência em vigor desde 1962, que suprime direitos constitucionais. A desproporcionalidade do uso da força do exército sírio na repressão ao movimento, assim como as mortes provocadas na tentativa de sufocar a rebelião, catalisaram os protestos e, no final de 2011, desertores do exército regular formaram o Exército Livre Sírio. Os combates entre os oposicionistas e o governo ganham em magnitude e o conflito passa a atrair jihadistas de vários países, incluindo a Al-Qaeda. Em junho de 2012 as Nações Unidas afirmam que o país vive uma guerra civil. 

Barack Obama estabeleceu como “linha vermelha” o uso de armas químicas como barreira para um envolvimento estadunidense. Mesmo sem comprovação clara que Assad ordenou o uso do gás sarin, o presidente é pressionado por Democratas e Republicanos para intervir. Convém ressaltar que, apesar das constantes tensões, entre Síria e Israel, Bashar al-Assad é um inimigo conhecido. Podem-se identificar padrões de conduta entre Israel e Síria que nos fornecem evidências que ambos os países possuem um acordo “tácito”: Ameaças na fronteira das Colinas de Golã, transferências de armas para o Hezbollah e desenvolvimento de armas de destruição em massa, especialmente as nucleares, são intoleráveis. Caças israelenses destruíram o reator nuclear sírio antes da sua entrada em operação em 2007 durante a Operação Orchard. 

Recentemente, outros ataques à Damasco feitos com mísseis Popeye, a partir de submarinos israelenses, tiveram como objetivo cercear o envio de armas ao Hezbollah. O enfraquecimento de Assad e seu arsenal aumentaria a sensação de segurança dos israelenses. Já a Rússia possui interesses estratégicos no Mediterrâneo, especialmente na base naval de Tartus, mas as vendas de armas para a Síria se tornaram preponderantes. Desde os anos 2000, quando Assad ascendeu ao poder, o SIPRI contabilizou mais de 1 bilhão de dólares em vendas em armas para a Síria. A queda desse mercado seria um duro golpe na economia russa. Irã, China, Bielorússia, Rússia e Coreia do Norte exportaram juntos (2000-2012) aproximadamente 2 bilhões de dólares em armas, sem computar as transferências não contabilizadas. 

Para o Hezbollah, a derrocada do regime sírio representaria um sério revés de um fiel aliado e provedor de armas, cuja percepção é compartilhada por iranianos, que enxergam a Síria como um defensor em uma possível intervenção militar dos Estados Unidos e Israel no seu programa nuclear. A entrada do grupo libanês nas hostilidades, a pedido do presidente, que produziu uma alteração na balança da guerra em favor das forças regulares sírias, ressalta a importância da aliança. A Arábia Saudita é inimiga do regime de Teerã, forte aliado dos sírios, e percebe a queda de Bashar Al-Assad como um enfraquecimento dos iranianos em um cálculo da balança de poder na região e  ampliam o isolamento dos aiatolás. 

A queda do regime traria um vácuo de poder em um país em que os grupos étnicos minoritários que foram reprimidos pelos alauítas, grupo étnico-religioso que domina as estruturas políticas, entraria, provavelmente, em disputa pelo poder, em clima de revanchismo, com a participação da Al-Qaeda, que atua no País. Além do mais, o clima de “terra de ninguém” favoreceria o transbordamento de grupos armados para outras regiões, como ocorreu na migração de jihadistas da Líbia para o Mali. O conflito interno possui graves precedentes no Oriente Médio, como o Líbano de 1975 a 1990 e no Iraque pós Saddam Hussein. No caso do Líbano, os choques entre diversos grupos levaram muito tempo para se estabilizar. EUA e Rússia discutem o desarmamento sírio. Enquanto as potências internacionais disputam seus espaços, o povo sírio, que padece as consequências do embate, percebe que uma solução para o seu sofrimento está em um futuro distante. 

* Doutorando em Ciência Política/Estudos Estratégicos (UFF).

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

60 dias depois

Por Vítor Sandes* 
Leon Victor de Queiroz** 
Luiz Fernando Miranda***

Na av. Paulista, em frente ao MASP (Foto: Vítor Sandes)
Nos meses de junho e julho o Brasil passou por seu momento de maior ebulição política desde as Diretas Já, quando se lutou pelo direito do eleitor escolher diretamente o presidente da República, após 20 anos de regime militar. A população brasileira, após duas década de regime democrático, saiu às ruas para reivindicar por mais direitos, maior eficiência no gasto público e maior aproximação entre o poder público e a sociedade civil. Recentemente, o Brasil viveu um período de intensas manifestações que se alastraram por todo o país desde as grandes capitais até às pequenas cidades. Depois de dois meses, algo realmente mudou no Brasil.

A mudança começou antes do que normalmente pensamos. Deu-se início em 2005, com o mensalão. O PT, certamente, é o partido que mais representou um “partido de massas” no atual experimento democrático brasileiro. Durante as décadas de 1980 e 1990, foi o partido de esquerda que teve maior entrelaçamento com as causas sociais e que, buscou, lutar pelos direitos dos trabalhadores, e, por isso, defendia com veemência a ética da atuação da classe política. Posteriormente, o partido passou por transformações na sua relação com o eleitorado, pois abdicou de um discurso classista para uma agenda mais ampliada, passando a incorporar os anseios da população por maior acesso ao consumo. Com o mensalão, o partido deixou de ser o “bastião da ética”, mas continuou a ter importância significativa no cenário nacional, principalmente por controlar o Governo Federal, por ser extremamente bem organizado internamente e por ter lideranças políticas nacionais e estaduais que conseguiram dar conta deste caso de corrupção que marcou profundamente o primeiro governo Lula.

Desde então, houve a necessidade de se ter maior atenção à demanda popular por maior transparência dos atos públicos. Duas importantes leis que representaram um avanço mais que simbólico no sentido de limitar a corrupção: a Lei da Ficha Limpa” e a Lei de Acesso à Informação. Ambas trouxeram avanços no sentido de selecionar os políticos que podem se candidatar a cargos eletivos e coagir aqueles que exercem mandatos a “seguirem a linha”, inclusive aqueles que exercem cargos não-eletivos, como no caso de Ministros, Secretários e demais ocupantes da administração pública. No caso da Lei da Ficha Limpa, os cidadãos foram atores fundamentais no processo de construção da lei, que teve origem em projeto popular, o que representou maior abertura do Estado aos canais participativos, como fora tratado neste blog anteriormente.

Contudo, as duas leis foram insuficientes para responder a indignação popular latente depois de anos de casos de corrupção que se alastram desde o início do atual regime, em todos os níveis de governo (federal, estadual e municipal), com o entendimento dos cidadãos de que eles são protagonistas da cena política e não meros expectadores. Esse processo de transformação da opinião pública e da compreensão da política começa quando os cidadãos percebem que os partidos não estão sendo capazes de dar conta de todas as demandas populares e agirem de forma continuamente ética. Em meio a tudo isso, observou-se o surgimento de novas formas de mobilização estabelecidas pelas redes sociais que possibilitam maior agilidade na organização de movimentos e protestos. É daí que eclodem os “movimentos de junho” no Brasil.

Os manifestantes se basearam em uma nova forma de organização mais prática e mais barata que as anteriores, em linguagem técnica houve uma significativa redução dos custos da ação coletiva. Como em outros países, a rede social virou uma ferramenta política, que pode continuar ajudando a mobilizar outros movimentos reivindicatórios, exercendo controle sobre a ação dos governos.

Passados sessenta dias, a classe política cedeu, mostrando que o processo é e pode ser mais democrático. Ainda no calor das manifestações populares, o Congresso Nacional voltou ao tema da reforma política, principalmente após a proposta do Executivo de se fazer um plebiscito ainda este ano e podendo estabelecer regras para o próximo pleito. Propostas que modifiquem significativamente a estrutura do exercício do poder e, em curto espaço de tempo, tendem a não prosperar e isto é o que acontece. O PMDB, maior partido da coalizão federal, tem proposta diversa da apresentada pelo PT e isso termina por voltar à estaca zero. Uma comissão especial ficará encarregada de analisar a tão divulgada e requerida reforma política. 

Mas será que a reforma a ser proposta – que tende a defender o financiamento de campanha exclusivamente público, sistema eleitoral distrital ou proporcional de lista fechada – terá a capacidade de aperfeiçoar o gasto público? Trarão um atendimento mais eficiente nos hospitais públicos? Melhorarão o gasto com a educação pública? E o transporte público, será mais inclusivo? A população parece acertar no diagnóstico, mas o governo (não somente a União) erra no tratamento. 

No que tange aos governos estaduais, a truculência das ações policiais, agora não voltada apenas à classe mais pobre, fez da desmilitarização da polícia uma bandeira que não deve ser desperdiçada. Parece não caber mais, depois de 25 anos de democracia, uma polícia que foi desenhada e organizada durante a última ditadura militar no país. Sua organização, seu treinamento e seus propósitos precisam ser outros. O Estado estará atento a essa nova demanda ou tentará resolvê-la com “reforma do sistema eleitoral”?

Passados sessenta dias, as iniciativas governamentais parecem não responder completamente às demandas da população. O acesso à saúde continua abaixo da expectativa, as escolas seguem com os mesmos problemas, o transporte público, com as velhas deficiências, e a população, com os mesmos sofrimentos. Mesmo com a melhoria dos indicadores sociais nos últimos anos, mais passos precisam ser dados no sentido de se construir um Estado para a sociedade. Mudanças graduais são importantes, mas em dois meses uma coisa realmente mudou: a classe política percebeu que as pessoas sabem que a “velha política” não dá conta das reais demandas da população.

* Doutorando em Ciência Política (UNICAMP).
** Doutorando em Ciência Política (UFPE).
*** Doutorando em Ciência Política (UFF).

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Rumos da democracia. Uma aposta na democracia participativa

Por Rony Coelho*

O Brasil pode se tornar uma democracia participativa. Essa é uma aposta que joga alto, obviamente. Não implica, portanto, a crença de que realmente vá acontecer. Todavia, temos aparato e um pouco de conhecimento (know-how) para tanto. Existem hoje no país mais de 30.000 conselhos gestores em diversas áreas de políticas públicas. Já experimentamos mais de duas centenas de casos de orçamentos participativos (em 261 cidades para ser mais preciso). Temos a construção de planos diretores municipais, em que as audiências públicas são obrigatórias, em mais de 1.500 cidades. O número de conferências nacionais já ultrapassa mais de uma centena (115), sem falar das estaduais e municipais. Temos outros mecanismos que não encontramos em nenhum lugar do mundo como a Comissão de Legislação Participativa. Podemos mencionar ainda as iniciativas populares, como a Lei da Ficha Limpa (2010) e a lei de iniciativa popular contra a compra de votos de 1998, entre outras. Tudo isso existe e/ou aconteceu, praticamente, nos últimos 25 anos.

É de se esperar que alguns podem objetar que esses mecanismos não são efetivos. É verdade, em parte. Mas é verdade também que temos algumas experiências que foram exitosas. Além disso, tomando todos em conjunto, não existe nada parecido em nenhum outro país do mundo, com tamanha dimensão, isto é, em número de experiências.

Também há que se lembrar que grande parte dos mecanismos citados foi gestada nas lutas populares dos anos 1970 e 1980 e, com forte pressão dos movimentos sociais e outros segmentos voltados a causas populares, conquistada durante o processo constituinte (1987-8). Nós, os brasileiros, na sequência dos acontecimentos, não conseguimos fazer todas essas coisas funcionarem, de fato. É preciso considerar o contexto. O avanço do projeto neoliberal na década de 1990, por exemplo, foi um grande contraponto. E os problemas não param por aí. Na verdade, são muitos. Mas não é preciso adentrar nesse ponto.

A questão é: tendo em vistas os acontecimentos recentes, as grandes ondas de manifestações que aportaram por aqui, quais os rumos da democracia no Brasil? Em tempos em que os nervos ficam à flor da pele e parece haver uma luz no fim do túnel, ainda que não saibamos onde esse túnel vai nos levar, não parece descabida tal questão e apostar, ou melhor, ariscar, sem pretensão, palpite sobre a mesma.

Não se trata, porém, de uma aposta desmensurada. Para além das manifestações recentíssimas, alguns outros fenômenos presentes no contexto mundial e que, portanto, reverberam-se no Brasil, contribuem para pensar:

1 – Vivenciamos um amplo declínio do partidarismo e da participação eleitoral, o que não é preciso ir muito longe para enxergar. Mas pontuo como evidência: a não identificação com os partidos existentes, altas taxas de absenteísmo, voto nulo, volatilidade partidária, etc. Sem falar de um sentimento mais geral de descontentamento e desconfiança nas instituições políticas tradicionais, em especial o parlamento. Esse é um fenômeno que se acentuou só muito recentemente, a partir dos anos 1990.

2 – Apesar do declínio da participação eleitoral, hoje as pessoas participam mais do que em décadas passadas. Evidência disso são as inúmeras formas de atuação que compõem o repertório de ação política de cidadão e grupos. Contribui para tanto o avanço da tecnologia e a disponibilização de informações (por fora da grande mídia, é claro). Além dos protestos, manifestações (pense no grupo feminista Femen; na Marcha das vadias, na Parada Gay etc) e ocupações (occupy Wall Street e indignados da Espanha), mais pessoas têm, por exemplo, proposto e assinado um maior número de petições (contra o Renan Calheiros, por exemplo). Há também um maior número de pessoas apelando a processos judiciais para a garantia de direitos; bem como recorrendo a ouvidorias e leis de acesso à informação etc. Sem falar em novas formas de ações como  o "cyberativismo" e "hackerativismo" (pense no anonymus ou no wikileaks), para ficarmos com alguns poucos exemplos.

3 – Apesar do declínio do partidarismo, os partidos políticos continuam a desempenhar suas funções chaves no regime de governo representativo. Não há nenhuma evidência de que os partidos sairão do jogo facilmente. Pelo contrário, os partidos têm importância destacada, principalmente, na arena governamental. O número de partidos tem ampliado e, consequentemente, o de candidatos nas eleições. É através deles que os políticos expressam seus posicionamentos e podem disputar cargos eletivos. Mas de todo o modo, os agentes e líderes partidários estão cientes das transformações no mundo (me refiro aos pontos 1 e 2). Mais do que resistir a essas tendências (se fosse assim, provavelmente não aguentariam por muito tempo a pressão), os partidos estão a adaptar-se a elas.

4 – Tendo esses elementos (ou fenômenos) em jogo, há indícios de que podemos caminhar, em um primeiro momento, para um processo de abertura das instituições tradicionais. Alguns sintomas nesse sentido já são visíveis, por exemplo, a criação ouvidorias em órgãos públicos e de leis de acesso à informação, entre outras inovações institucionais de mesmo cunho, empreendidas mundo afora. Diria até mesmo uma maior utilização, por vários governos, de mecanismo como referendum e plebiscito.

Considerando esses elementos, e resguardadas as devidas ressalvas para o caso do Brasil, em um momento posterior – e essa é a aposta – podemos caminhar para uma maior efetivação das instituições participativas (conselhos, conferências e outras instâncias). Nesse sentido, o regime de governo representativo pode ser mesclado com uma democracia participativa. Isso porque temos que ter em conta que o processo é longo e não é unidirecional. Ademais, pensar em democracia participativa não se trata da democracia direta como a dos gregos, na ágora. Seria um tanto imprudente e inviável querer que todas as questões públicas devessem ser submetidas a voto popular com a presença de todos em praça pública (ou mesmo de modo virtual), por um largo período de tempo. No entanto, processos de decisão de muitas questões públicas, incluindo algumas das mais importantes do ponto de vista do funcionamento do sistema político, podem ser comportados por instâncias participativas.

Com a recente onda de manifestações, com repercussões por todo o Brasil, não sabemos como o sistema político se portará. Mas é interessante, por exemplo, observar que para dialogar com integrantes do Movimento do Passe Livre (MPL), responsável pela iniciativa das mobilizações, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), convocou o Conselho da Cidade. Poderia ser uma reunião a portas fechadas ou em qualquer outro órgão? Certamente. No entanto, convocou o conselho consultivo formado por representantes de diversos segmentos: movimentos sociais, sindicatos, associações empresariais, liderança religiosas etc. Independente do caráter do conselho, talvez esse seja um forte sintoma dos tempos que estão por vir.

* Doutorando em Ciência Política (UNICAMP) e Membro do Grupo de pesquisa Construção Democrática (IFCH/UNICAMP)

terça-feira, 4 de junho de 2013

A trajetória dependente da reforma institucional do subsetor portuário brasileiro

Por Raphael Machado*

Os gargalos da infraestrutura econômica logística no Brasil são velhos conhecidos há anos, seja por aqueles que produzem, consomem ou mesmo exportam a produção nacional. É no intuito de reduzir esses gargalos que o Governo Federal vem atuando nos últimos anos com a criação de vários programas voltados ao atendimento da infraestrutura logística nacional. As inúmeras tentativas de reformas do setor sempre esbarraram em empecilhos jurídicos e disputas entre importantes atores e coalizões do setor. Os principais subsetores afetados por esses gargalos são o ferroviário e o aquaviário. No caso do setor ferroviário, a recente aprovação do direito de passagem, no qual um operador independente pode passar na malha concedida a outro operador, visou eliminar monopólios e baratear o custo do frete naquele modal. Quanto ao subsetor aquaviário, a recente discussão sobre a Medida Provisória dos Portos (MP 595/2012) é mais um capítulo da política das reformas institucionais do setor logístico, o qual sofreu inúmeras pressões por parte dos atuais concessionários de terminais portuários, futuros licitantes e, não menos importante, os sindicatos dos trabalhadores portuários.

Os portos no Brasil, até 1990, eram marcados pela centralização da administração no Governo Federal, com a existência de uma empresa holding (a PORTOBRÁS) controlando a gestão dos portos públicos que os explorava por meio de subsidiárias, as Companhias Docas, empresas públicas que atuavam mediante autorização do Ministério dos Transportes, assumindo o papel de autoridade portuária nos portos sob sua jurisdição. Havia o monopólio público na execução da operação de movimentação e armazenagem de mercadorias e o monopólio dos sindicatos de trabalhadores na administração da força de trabalho “avulsa”. Os terminais de uso privativo já existiam, porém, a eles era permitida apenas a movimentação de cargas próprias. Nessa configuração institucional um ator alçado em sua relação de poder foi o sindicalismo portuário que, por meio da legislação introduzida entre as décadas de 1930 e 1940, concedeu a eles dupla função: de representantes dos interesses da categoria, como também de gestores da força de trabalho. Isso deu ao sindicalismo portuário força e poder de barganha dificilmente encontrados em outros setores da economia, tal como os petroleiros ou mesmo o sindicalismo do setor público. 

Com a extinção da PORTOBRÁS, logo após a posse de Fernando Collor de Mello (1990), iniciou-se um processo de confusão administrativa e rápida deterioração das estruturas portuárias brasileiras. As mudanças no subsetor portuário consolidaram-se apenas a partir da promulgação da chamada Lei de Modernização dos Portos, a Lei 8.630/1993. Essa lei foi resultado de um conflituoso processo político gestado por um poderoso lobby empresarial, um grupo chamado Ação Empresarial Integrada, que incluía tais atores. A resultante desse processo foi a possibilidade de a União conceder à iniciativa privada a exploração de portos públicos; a desvinculação da operação portuária da administração pública do porto, possibilitando a contratação de força de trabalho diretamente por operadores privados, porém, regulada pelos Órgãos de Gestão de Mão de Obra do Trabalho Portuário (OGMO); arrendamento de terminais dentro do porto público para a iniciativa privada, permitindo a competição entre terminais em um mesmo porto; quebra do monopólio dos sindicatos de trabalhadores no fornecimento e escalação da mão de obra. Esse processo foi bastante conturbado, sendo que empresários interessados em reduzir custos ativaram seus influentes canais de lobby junto a setores dos poderes Legislativo e Executivo, favorecendo suas reivindicações, assim como os trabalhadores, que fizeram forte uso das greves para tentar barrar medidas que não agradaram a categoria. 

A conturbada trajetória que resultou na aprovação da MP dos Portos pelo Congresso no dia 16 de maio é, em ampla medida, dependente do processo de reforma da década de 1990, cujos canais de influência do empresariado e dos trabalhadores junto aos poderes Executivo e Legislativo ainda permanecem ativos e foram auto-reforçados ao longo do tempo, aumentando o poder de barganha desses atores. 

A principal oposição à MP 595/2012 foi dos atuais operadores privados com concessionários de portos públicos, cuja fatia de mercado foi frontalmente ameaçada pela redação da MP, que os obriga a movimentar a carga de terceiros e também oferecer menores tarifas em relação à maior quantidade de toneladas movimentada, principal inovação da medida frente à legislação de 1993. Esses operadores conseguiram colocar suas pautas de maneira contundente, sem que o Governo conseguisse muita margem de manobra para contorná-las. Isso é evidente em relação à emenda parlamentar que possibilita os operadores privados arrendatários de terminais públicos obterem mais dez anos para a execução de suas funções, sem precedência de um mecanismo de concorrência pública para a concessão de tal atividade. Essa emenda está sendo considerada problemática pelo Planalto, uma vez que pode gerar fortes questionamentos jurídicos em futuras concessões.

Talvez a maior novidade desse processo de reforma tenha sido a participação ativa do setor sindical na aprovação da MP 595/2012, cujo impacto sobre os direitos dos trabalhadores portuários é evidente, representando uma clara flexibilização das conquistas trabalhistas do subsetor. O embate entre Central Única dos Trabalhadores (CUT), coligada a outras centrais, e a Força Sindical, nos bastidores do Congresso, é indício de antigas rusgas entre as centrais, e que representou o isolamento do deputado Paulo Pereira da Silva (PDT-SP), líder da Força Sindical, em sua postura contrária a contratação de trabalhadores fora dos OGMOs. O sindicalismo como um importante ator de veto das reformas no subsetor portuário dessa vez teve sua atuação fortemente marcada em apoio ao Governo Federal, não resultando em greves ou paralisações que prejudicassem o escoamento da safra desse ano.

A trajetória da reforma institucional do subsetor portuário é dependente, deitando suas raízes em processos longos, com mais de 20 anos de desenvolvimento, reforçando canais de lobby e acentuando a participação ativa de diversos setores sociais no interior do Congresso para a aprovação da MP dos Portos. 

A batalha política em torno da reestruturação do setor de infraestrutura econômica logística no Brasil está apenas começando, quebrando monopólios de operadores públicos e privados em concessões mal projetadas de duas décadas atrás. Afirmar que as reformas institucionais são resultantes de trajetórias dependentes não significa afirmar que seu resultado já é conhecido, muito pelo contrário, existem evidências das principais coalizões em torno dos eixos centrais das reformas, porém, as contingências do processo político são muito maiores do que os próprios atores.

* Doutorando em Ciência Política (UNICAMP).

quarta-feira, 15 de maio de 2013

O Lulismo e Eduardo Campos

Por Cláudio André*

O livro recente do cientista político André Singer (USP), “Os sentidos do Lulismo”, apresenta duas considerações fundamentais sobre a política brasileira: em primeiro lugar, o fenômeno lulista pode ser entendido diante do apoio eleitoral que Lula obteve junto as classes mais “pobres”, sendo a realização de um projeto político capaz de ajudar os mais pobres sem estabelecer confronto com a ordem socioeconômica vigente. Este é o legado do lulismo ao perseguir um equilíbrio entre mudanças sociais e conservação da política econômica, consolidando o país nas hostes do capitalismo competitivo.

Em segundo lugar, o êxito do lulismo enquanto projeto político assume centralidade na construção das estratégias partidárias. Em outras palavras, será incontornável aos atores políticos que almejam liderar a política no plano nacional se por de costas ao “social”, enquanto projeto e herança lulista junto aos eleitores. Vejamos que as interpretações sobre o lulismo na política brasileira adquirem grande importância para entendermos as movimentações em torno da ascensão do Governador Eduardo Campos (PSB) como possível líder de um novo projeto eleitoral, mas que mantém suas raízes no lulismo sem ruptura definitiva, sobretudo, na dimensão partidária.

A ascensão de Campos ocorre em uma conjuntura em que todas as forças políticas necessitam dialogar com os eleitores que estabeleceram com o lulismo uma relação de representação política no qual Campos é um dos protagonistas. Para termos ideia, os investimentos federais subiram 150% em Pernambuco entre 2006 e 2010. O PIB pernambucano aumentou 16% em 2010, o dobro da média nacional, em um cenário de industrialização acelerada (Singer, 2012). Lá o PIB per capita elevou-se em 86% entre 2002 e 2008. Desse modo, tais mudanças socioeconômicas estruturam em parte a escolha do voto por parte do eleitor, mas creditando os atores políticos locais e nacionais.

Uma possível candidatura de Campos tem como potencial dinamizar o espectro eleitoral que apoia o lulismo, mas também representar eleitores descontentes com uma oposição que não se transfigurou com o tempo, que ainda é em parte incapaz de traduzir os anseios produzidos pela maioria dos eleitores em torno da centralidade das conquistas que o lulismo construiu nos últimos dez anos. Se FHC nos deixou a estabilidade macroeconômica, Lula ofertou ao país a igualdade e um acesso mais justo aos direitos sociais.

Daí que a movimentação de Campos mereça atenção, pois cria pontes de diálogo com a oposição no plano eleitoral das alianças, mas sabendo que o seu êxito não tem como horizonte imediato o rompimento com o lulismo. Talvez, concretamente, devamos ter cautela nas análises, mas sem dúvida, a sua candidatura pode causar mais reflexões na oposição do que no governo, pois demonstra que partidos importantes à democracia brasileira como é o PSDB e o DEM, acusam dificuldades em interpretar o momento atual, sobretudo, os traços marcantes do fenômeno lulista que está para além dos passos dados pelo seu principal líder. O traço marcante da conjuntura atual aponta a tendência de reestruturação das forças partidárias em torno de novos interesses em constante sintonia com esta agenda lulista. A criação de novos partidos é um dos indicadores deste momento, em especial, as forças políticas de oposição.

* Doutorando em Ciências Sociais (UFBA) e Professor de Ciência Política da Universidade Católica do Salvador (UCSAL)

terça-feira, 30 de abril de 2013

A PEC 33/2011 e o Papel do Judiciário no Modelo Democrático Brasileiro

Por Leon Victor de Queiroz* e Vítor Sandes**

A modificação do arranjo institucional que a PEC 33/2011 propõe ao tirar os "super" poderes do Supremo Tribunal Federal, que detém a última palavra sobre a Constituição, não causaria estranheza em outra conjuntura política em que não houvesse uma forte descrença sobre o papel do Legislativo em lidar com a corrupção (a exemplo da falta de punição aos condenados por corrupção) e com questões básicas como os direitos humanos (a exemplo do caso Feliciano, já abordado neste blog).

O Supremo Tribunal Federal só tem acumulado poder desde a consolidação do modelo de revisão judicial misto em 1988. Essa hibridização uniu o modelo americano de revisão judicial difusa, onde qualquer juiz pode exercer o controle de constitucionalidade fazendo com que sua decisão surta efeitos apenas entre as partes processuais, com o modelo austríaco de Kelsen que é a forma concentrada na qual só alguns atores institucionais podem acionar o procedimento no Supremo. Em 1993, houve a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), que até à Emenda Constitucional 45, de 2004, era de exclusividade do Presidente da República, mesas diretoras do Senado e da Câmara e do Procurador-Geral da República (chefe do Ministério Público Federal). Juntamente com a ampliação dos sujeitos que podem propor a ADC veio a Súmula Vinculante, que obriga todo o Judiciário a decidir de acordo com o que foi sumulado. 

Não há como negar que o STF é um tribunal muito poderoso. Na obra Patterns of Democracy (2012) de Arend Lijphart, na qual foram analisadas comparativamente 36 democracias entre os anos de 1945 a 2010, a Alemanha aparecia como um país de alto ativismo judicial por ter considerado inconstitucional 5% das leis federais contestadas.

O modelo de composição da mais alta corte do país também não deixa dúvidas de que as indicações são políticas e não poderiam ser diferentes, já que o Tribunal lida com questões políticas. Um tribunal "técnico" formado total ou majoritariamente por juízes de carreira nos deslocaria da democracia para a tecnocracia. Inclusive, a indicação presidencial com a anuência do Senado Federal é uma forma de recrutamento que evita a radicalização do tribunal, permanecendo uma Casa de bom senso, principalmente pelos filtros da coalizão no Senado antes da sabatina.

Outro ponto importante é o de que, aparentemente, o modelo consensual brasileiro parece estar se transformando no modelo da maior minoria, onde frentes parlamentares religiosas conseguem impor suas crenças e/ou vetar as que lhes são contrárias. Isso é perigoso, pois deixam-se de cultivar valores comuns e universais para impor a vontade de grupos. É o sectarismo ameaçando o equilíbrio que até pouco tempo predominava no Parlamento. É nesse ponto que incide a necessidade de um Judiciário que salvaguarde os princípios constitucionais, garantindo o bom funcionamento do ordenamento jurídico brasileiro. 

Submeter ao controle do Legislativo as decisões do Judiciário não é um absurdo se estivéssemos na Inglaterra ou na Dinamarca, já que em sociedades homogêneas que utilizam o modelo de Soberania do Parlamento, o Judiciário não interfere nas decisões parlamentares. Mas no contexto brasileiro isso é extremamente perigoso por uma série de razões: 1) nem sempre as leis aprovadas no Brasil estão adequadas à Constituição; 2) a construção dos direitos humanos tem sido constantemente ameaçada no âmbito do Legislativo.

É impossível que um órgão responsável pela interpretação da Constituição não atue quando provocado, principalmente diante de uma Carta Magna ampla, analítica e que constitucionalizou direitos e garantias individuais e até mesmo políticas públicas. 

O argumento de que os políticos podem ser punidos pelas urnas enquanto que os ministros do STF são para toda vida não se sustenta. A média de idade dos nomeados a ministro do STF é de 55 anos, ou seja, eles passam em média 15 anos na Corte. Já as elites parlamentares passam mais tempo que isso no Parlamento. A tão esperada accountability vertical (que estabelece mecanismos de controle pelo eleitorado) parece não funcionar apropriadamente. E como já dizia O’Donnell, é preciso investir em accountability horizontal, ou seja, nos controles estabelecidos entre os poderes, reforçando a atuação de instituições como Ministério Público, Tribunais de Contas e Poder Judiciário.

O STF só age quando provocado e para fazer valer a Constituição. Onde se vê o Judiciário legislando, vê-se um Congresso indiferente à Constituição e ameaçando os Direitos Humanos. É só observar o comportamento do Legislativo com deputado Marco Feliciano, cuja eleição para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias foi legítima e democrática. E o remédio legítimo e democrático contra as pregações que o parlamentar faz no colegiado enquanto legislador, caso se transformem em leis, é o Supremo Tribunal Federal, já que em tese o Brasil é um Estado Laico.

No nosso modelo democrático, a Constituição não é um enfeite, muito menos uma carta de intenções (como o foi em sua gênese). O problema é que, após 25 anos da nova Ordem Constitucional, o Congresso foi omisso em muitos pontos e, eis que, há o Judiciário para reforçar a Lei Maior.

Outro detalhe importantíssimo é o de que os Ministros do STF não caem do céu. O Executivo e os filtros da coalizão no Senado é que escolhem seus membros. Eles não são estranhos à estrutura. Ademais, para quem acha que o STF é composto apenas por advogados, é necessário esclarecer que 45% da composição do STF de 1988 a 2012 foi de advogados, 31% foi do Ministério Público e 22,7% de juízes de carreira. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) que pela Constituição deve ter 66% de magistrados em sua composição e 33% compartilhados entre Advogados e membros do MP, desde sua criação até hoje teve 58% de juízes, 11% de membros do MP e 30% de advogados, ou seja, o perfil de composição do STF mostra uma maioria de membros do Ministério Público e da Magistratura, o mesmo ocorre no STJ, mas de maioria dos magistrados e ninguém contesta a legitimidade do STJ.

O STF não foi eleito pelo voto direto, mas quem o colocou lá foi. Então só há legitimidade pela eleição direta? Recentemente a Argentina anunciou reformas em seu Conselho da Magistratura onde a eleição popular e a necessidade de o candidato ser filiado a partido político aumentariam o controle dos partidos sobre o Judiciário, o que provocou protestos. 

Caso esta PEC seja aprovada, estará evidenciada a tendência que alguns deputados têm de ignorar a (in)constitucionalidade de suas propostas e, consequentemente, da própria incapacidade da Casa em evitar conflitos institucionais com o Judiciário. Mais uma vez fica reforçada a importância do Judiciário no controle da constitucionalidade e no exercício de suas demais prerrogativas para o bom funcionamento da democracia brasileira. O debate evidencia o papel deste Poder na salvaguarda da Constituição frente a um Legislativo também importante, mas que, por vezes, tropeça entre as próprias pernas. Este tem falhado, seja ao permitir que condenados por corrupção continuem em seus cargos ou pela omissão no caso Marco Feliciano, que permanece à frente da principal Comissão legislativa que busca o fortalecimento dos Direitos Humanos no Brasil.

Portanto, o legislador constituinte originário, tendo consciência ou não, permitiu ao STF julgar as próprias alterações que minorem o poder da Corte. Caso essa PEC seja aprovada, tanto o Procurador-Geral da República quanto o Conselho Federal da OAB poderão (e deverão) entrar com Ação Direta de Inconstitucionalidade e o STF deverá decidir pela inconstitucionalidade da emenda.

Doutorando em Ciência Política (UFPE).
** Doutorando em Ciência Política (UNICAMP).

sexta-feira, 5 de abril de 2013

A tensão entre as Coreias: dissuasão, fatores domésticos e externos

Por Antônio Henrique Lucena Silva*

A derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial trouxe a península da Coreia para as atenções de americanos e soviéticos. Ambos tinham visões diferentes de como seria o futuro da região. A divisão das Coreias foi estabelecida na Conferência de Potsdam (1945) em que os aliados decidiram sem consultar os coreanos. EUA e URSS tinham planos para uma Coreia unida, mas as desavenças políticas dos coreanos e a falta de um acordo entre os Estados, ressaltada pela crescente luta de poder entre as duas forças, resultou no fim das conversas em 1948. Em agosto de 1948 foi criada a República da Coreia, no sul e, no norte, a República Democrática do Povo. Nos dois casos, o regime era autoritário: Syngman Rhee na Coreia do Sul e Kim-Il sung na Coreia do Norte.

O regime do norte iniciou uma militarização com apoio da União Soviética e China, enquanto o sul, após a saída das tropas americanas, estava militarmente despreparado e não possuíam equipamentos adequados. Operações de guerrilha no sul, apoiados pelo norte, levaram a um conflito em larga escala. Em 25 de junho de 1950, o Norte lançou uma ofensiva com 135 mil tropas, apoiados por tanques T34 e aviões Yak contra o Sul. Os Estados Unidos conseguiram uma resolução na ONU que apoiava a intervenção do Conselho de Segurança para repelir o ataque da Coreia do Norte. 

A Guerra da Coreia pode ser dividida em cinco fases: 1) Invasão do Norte, de 25 de junho a 1 de agosto de 1950; 2) a defesa do Perímetro de Pusan, 2 de agosto a 15 de setembro; 3) Ofensiva para o Yalu, 18 de setembro a 1 de novembro; 3) A intervenção chinesa, 2 de novembro de 1950 a 1 de janeiro de 1951 e, por último, 5) A ofensiva da primavera, de 5 de janeiro a 1 de abril. Durante dois anos a Linha de Frente não se moveu (que foi estabelecida pela ofensiva da primavera) ao longo do Paralelo 38 e, finalmente, foi assinado um armistício em 27 de junho de 1953, determinando um status quo ante bellum, ou seja, como as coisas estavam antes da Guerra. Estima-se que nos três anos de conflito milhões de pessoas morreram: 415 mil militares sul-coreanos, 33,741 mil foram perdas americanas em batalhas, 7 mil da Comunidade Britânica e aliados, enquanto as baixas norte-coreanas e chinesas foram estimadas em 2 milhões, e as baixas civis em toda a península em 1,25 milhão. 

Os resultados da Guerra tiveram efeitos internos e externos nos países. Na China, Mao Tsé-Tung usou o conflito para consolidar o Partido Comunista dentro do País e eliminar a oposição considerada danosa aos interesses nacionais. Nos dois blocos houve legitimidade para a ampliação dos gastos militares, especialmente no Ocidente, com os Estados Unidos (dos gastos totais do governo de 30,4 % em 1950 para 65,7% em 1954). A consolidação da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) como aliança, maior contenção a regimes comunistas, maior pressão sobre o desarmamento alemão, além de um maior comprometimento com a China Nacionalista (Taiwan). O governo Park Chung-Hee (1961-1979) incentivou a construção de complexo para a indústria de defesa em Changwon em que as fábricas estavam concentradas em grande conglomerados incluindo a Samsung (Aerospace), Hyundai (Precision), Daewoo Heavy Industries, Ssangyong Heavy Industries e a Lucky-Goldstar (LG). 

Atualmente, A Coreia do Sul é um país bem armado e com uma base industrial de defesa que atende as necessidades básicas locais. O País adotou como estratégia o fomento à indústria doméstica e a aquisição de material bélico avançado do exterior (para o período 2008-2012 o País foi o quinto maior importador, com 5% compras totais). O norte não acompanhou o desenvolvimento do sul, assim como está tecnologicamente defasado aos aliados da Coreia do Sul, especialmente dos Estados Unidos. As recentes manobras militares para treinamento de pessoal, que são feitas anualmente, dentro do marco dos exercícios militares Foal Eagle (nome dado na atual gestão de Barack Obama, entre os EUA e a República da Coreia) são alvos das ameaças do Norte que buscam o cancelamento das operações militares, que ocorreu apenas durante o exercício Team Spirit, durante o governo Bill Clinton. 

Kim Jong-un afirmou recentemente que a política nuclear é um dos pilares das estratégias do regime, declarando que: "nossa força nuclear é uma dissuasão bélica confiável, e uma garantia de proteger nossa soberania" e que "está na base de um forte poderio nuclear que a paz e a prosperidade possam existir, e também a felicidade da vida das pessoas." Entende-se a opção da Coreia do Norte pela dissuasão nuclear: diferentemente de 1950 o país não possui superioridade militar com relação ao Sul. A única superioridade da Coreia do Norte é no número de soldados, o que não significa muita coisa nos dias atuais porque a maior parte dos ganhos em uma guerra são obtidos através da tecnologia, principalmente através de bombardeios mais eficientes, no qual há a minimização dos gastos e a maximização das baixas inimigas.

As ameaças da Coreia do Norte se baseiam na clássica concepção de dissuasão nuclear. Autores da dissuasão como Bernard Brodie (The Absolute Weapon: Atomic Power and World Order, 1946), analisam a arma nuclear através da ótica da política internacional em que esses artefatos podem servir de instrumento para prevenir um oponente a ter uma ação indesejada. Nesse sentido, a bombas atômicas seriam um forte inibidor de uma possível agressão. A utilização da dissuasão é baseada na ameaça de retaliação. A efetividade da dissuasão ocorre quando o adversário se convence que você tem a vontade e a capacidade (poder) de infligir danos consideráveis ao outro. De acordo com Robert Art (To What Ends Military Power? International Security, 1980), as armas nucleares podem garantir a segurança de um Estado porque são relativamente mais baratas do que um exército convencional. Efetivamente, como foi colocado acima, a dissuasão ocorrerá se o Estado ameaçador possuir capacidade de grande destruição ao adversário. O que não seria o caso da Coreia do Norte. 

Uma corveta sul-coreana foi afundada por um torpedo norte-coreano em 2010 e, ainda nesse mesmo ano, um ataque de artilharia atingiu a ilha de Yeongyeong matando dois soldados. Devido às ações agressivas do Norte, a Coreia do Sul estaria menos disposta a cooperar em cancelar o exercício com os Estados Unidos. As ações desse tipo possuem como objetivo forçar uma negociação e conseguir incentivos, especialmente para economia (combustível e comida), estratégia adotada pelo pai de Kim Jon-un. Outro aspecto da política doméstica também é importante: ambos líderes são recém chegados ao poder e necessitam de afirmação interna. Kim-Jong un, neto de Kim-Il Sung, é visto com desconfiança pela alta cúpula das Forças Armadas e estaria despreparado para o cargo. A busca por uma “dissuasão nuclear” nos moldes clássicos faz parte do processo de afirmação da autoridade de Kim, assim como a necessidade do regime demonstrar força. Park Geun-hye, atual presidente da Coreia do Sul, reafirma sua força quando diz que leva a sério as ameaças do norte e que faria uma "enérgica represália" em caso de ataque. A presidente também sinaliza que a sua atitude não-cooperativa (de não cancelar o exercício) é uma clara mensagem ao norte e que sua postura é de não dar mais concessões aos norte-coreanos que sempre usam um binômio conhecido: ameaças para conseguir concessões e, assim, afirmar sua autoridade.

É importante ressaltar que o contexto atual é radicalmente diferente da Guerra Fria. A China depende de suas exportações para os Estados Unidos e parece menos disposta a intervir do que anteriormente. O País abandonou a postura que possuía desde o 8º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês de apoiar revoluções e Estados revisionistas da ordem internacional.  O sistema internacional do mundo pós Guerra Fria é desfavorável à Coreia do Norte. A crise entre os Estados está marcada no campo da retórica e seus desdobramentos poderão ser vistos em breve, especialmente quando o exercício Foal Eagle terminar.

* Doutorando em Ciência Política/Estudos Estratégicos (UFF).

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Comentários sobre o caso Marco Feliciano

Por Vítor Sandes* e Leon Victor de Queiroz**

Marco Feliciano é um deputado federal, eleito em 2010 pelo Partido Social Cristão (PSC) de São Paulo, com um pouco mais de 210 mil votos. Em 2011, o deputado foi acusado de ter escrito comentários racistas e homofóbicos na rede social twitter.

Ele acusou, por sua vez, os usuários de terem deturpado suas declarações. Sobre a acusação de racismo, o deputado alegou ter se baseado nas passagens bíblicas. Em entrevista à Época, ele afirmou “a palavra lançada (a maldição) só é quebrada quando alguém encontra Jesus. Quando eles fazem isso, a maldição não repousa mais sobre eles. Ela é quebrada em Cristo”. Reproduzia, então, um discurso cristão de que a maldição só é quebrada quando o indivíduo aceita a religião cristã. Não apenas africanos, mas todos os indivíduos não-cristãos continuariam amaldiçoados, ou seja, estariam condenados a não entrarem no “reino dos céus”.

Sobre a acusação de que seria homofóbico, Feliciano fez a seguinte declaração: “que fique bem claro aqui de uma vez por todas, não sou homofóbico. O que as pessoas fazem nos seus quartos não é do meu interesse. Sou contra a promiscuidade que fere os olhos de nossos filhos, quer seja na rua, nos impressos, na net ou na TV”. Ele afirmou ainda: “O que eu não aceito é a prática da promiscuidade aos olhos dos meus filhos, as atitudes homossexuais em espaço público, dois homens se beijando na frente dos meus filhos. Isso fere o Cristianismo do qual faço parte. Entendo as pessoas, mas não sou obrigado a aceitar a atitude delas”. Então, novamente, observa-se que a afirmação se fundamenta no cristianismo, sob a lógica de que a união entre seres humanos deve ser sempre entre homem e mulher, que dentre tantas passagens talvez a mais clara esteja em Efésios 5: 21-33.

Estes argumentos cristãos das escrituras sagradas representam a forma de pensar de um grupo religioso de um determinado contexto geográfico num dado momento histórico. Muito já se passou até chegarmos ao Estado Democrático de Direito no qual encontra-se o Brasil atualmente. Trilhando pela história, o Império Romano difundiu o catolicismo, depois veio a Reforma Protestante e as variadas ramificações que deram origem a uma série de Igrejas Cristãs. Ao longo dos últimos séculos, veio a formação do Estado moderno, o processo de secularização, a conquista dos direitos civis, políticos e sociais. Mesmo com a expansão do cristianismo, muitos países e povos continuaram seguindo outras religiões. A diversidade cultural e religiosa, portanto, é uma marca das sociedades.

Estados laicos, como o Brasil, devem tratar com neutralidade as questões religiosas. Devem garantir a liberdade religiosa, inclusive dos indivíduos serem politeístas, ateístas ou agnósticos. Em questões governamentais, assim, não deve haver interferência religiosa, qualquer que seja a religião, inclusive aquelas que se fundamentam no cristianismo.

Sendo assim, o deputado Marco Feliciano não descumpriu, necessariamente, a norma. Emitiu publicamente uma posição religiosa. Por outro lado, as pessoas que não concordam com tal posicionamento também podem discordar de suas declarações, inclusive protestando publicamente, seja nas ruas ou mesmo no Congresso Nacional. Até aí, tudo normal. A partir daí, passaram a existir alguns complicadores. Pelo menos, um grande complicador.

O deputado assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados. Esta é uma das 20 comissões permanentes da Câmara, e, segundo o próprio website da Comissão, tem como objetivo “receber, avaliar e investigar denúncias de violações de direitos humanos; discutir e votar propostas legislativas relativas à sua área temática; fiscalizar e acompanhar a execução de programas governamentais do setor; colaborar com entidades não-governamentais; realizar pesquisas e estudos relativos à situação dos direitos humanos no Brasil e no mundo, inclusive para efeito de divulgação pública e fornecimento de subsídios para as demais Comissões da Casa; além de cuidar dos assuntos referentes às minorias étnicas e sociais, especialmente aos índios e às comunidades indígenas, a preservação e proteção das culturas populares e étnicas do País”. 

Como o próprio website declara, “o principal objetivo da CDH é contribuir para a afirmação dos direitos humanos. Parte do princípio de que toda a pessoa humana possui direitos básicos e inalienáveis que devem ser protegidos pelos Estados e por toda a comunidade internacional”. Assim, a Comissão assume ser protetora dos direitos humanos no sentido amplo, buscando defender inclusive a liberdade sexual e religiosa de indivíduos, grupos e povos, incluindo afrodescendentes e homossexuais.

Considerando os aspectos objetivos e formais, a eleição de Marco Feliciano para a Comissão seguiu o procedimento democrático. Deputados da comissão votaram e o parlamentar obteve a maioria dos votos. Mas quanto aos aspectos subjetivos? O deputado representa a defesa dos direitos humanos e das minorias?

Assim, a problemática não surge do fato de ele ser um deputado da bancada cristã ou do discurso ao qual ele se vincula, mas das questões simbólicas envolvidas sobre sua posse na presidência da comissão. O exercício deste cargo tem uma importância simbólica fundamental para as minorias sociais e étnicas. O discurso míope e opaco de suas declarações públicas, justificado à luz das escrituras sagradas cristãs, não abarca a complexidade das questões que a Comissão deve enfrentar. Além do poder de definir a agenda, o presidente tem um papel simbólico central, principalmente no processo de mediação junto aos diversos grupos minoritários da sociedade brasileira, especificamente junto aos grupos afrodescendentes e homossexuais (historicamente prejudicados). Acima de tudo, o presidente da Comissão deve representá-los, jamais julgá-los como “amaldiçoados”, não importando suas crenças e convicções pessoais.

Nesta Comissão, o deputado representa um grupo religioso minoritário e não os múltiplos grupos sociais, religiosos e étnicos presentes no Brasil. Apesar de sua eleição não ferir a democracia no sentido de Schumpeter, ela é um problema na medida em que é extremamente inadequada segundo os objetivos da Comissão especificamente e do processo mais amplo de conquistas de direitos civis e sociais. A escolha do deputado para o cargo é um retrocesso sem precedentes. 

* Doutorando em Ciência Política (UNICAMP).
** Doutorando em Ciência Política (UFPE).

quarta-feira, 13 de março de 2013

A política de venda de armas nos EUA e a retórica da segurança

Por Luiz Fernando Miranda*
Colaboração: Letícia Travagin**

Em dezembro do ano passado, os jornais de todo mundo noticiaram que em uma escola na cidade de Newtown, no estado americano de Connecticut, houve um massacre onde um atirador desfechara a cena matando 28 pessoas. Vinte delas eram crianças.

Mais estarrecedor que este acontecimento é o fato de que jovens atiradores com problemas psicológicos, e que promovem massacres, não são uma novidade para aquele país. Esta sucessão de fatos acaba por denotar um grave problema de segurança pública nos Estados Unidos. O último massacre reacendeu o desejo de parte dos americanos, incluindo seu governo, de impor limites à venda de armas (especialmente de rifles) no território americano.

A questão, entretanto, não é nada trivial. Para início de conversa, a Segunda Emenda à Constituição Americana garante o direito a qualquer cidadão de portar armas. Há também um forte apelo à liberdade de mercado e a liberdade (negativa) de segurança. Contudo, não é novidade entre especialistas que não existe uma infinitude utilitária na liberdade de mercado e, além disso, esta liberdade de segurança na verdade é uma percepção que ou acaba por colocar parte destas armas nas mãos de quem não tem intenção meramente de se defender ou que tentam se defender de maneira inadequada.

Vemos ser mais difícil frear este comércio ao sabermos que não só os Estados Unidos são o maior importador de armas leves do mundo, mas que o comércio de armas leves é mal regulado e movimentou 4,3 bilhões de dólares só em 2010 (segundo o Small Arms Survey). Além disso, é comum na política americana haver políticos oriundos da indústria bélica, ou com fortes relações com ela, como o vice-presidente do governo George W. Bush, Dick Cheney.

Dificuldades postas, resta saber se a vontade institucional do governo, somada aos desejo de parte da população americana em diminuir a circulação de armas leves no país, conseguirá obter êxito. O final da trama é de difícil visualização.

* Doutorando em Ciência Política (UFF).
** Graduanda em Ciências Sociais (UNICAMP).

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Que raio de cultura política é essa?

Por Humberto Dantas*

Um cientista político, mesmo de férias, quando encontra os amigos é chamado ao debate. De férias em Natal-RN, terra de meu avô e de minha esposa, fui desafiado pelo livro de João Faustino. Faustino é político potiguar, de origem pernambucana. Esteve no governo FHC e aportou na gestão paulista de José Serra com status de secretário. É tucano, apesar de a legenda não ter expressão no Rio Grande do Norte. Seu principal interlocutor parece ser o senador paulista Aloysio Nunes Ferreira, que assina a apresentação do livro em tom exaltado. Comportamento típico em nossa política, a mais pura cordialidade “buarqueana”.

Em 2011 Faustino foi envolvido num grande escândalo associado à tentativa de implantação da Inspeção Veicular, de inspiração paulistana, no estado nordestino. Diversas lideranças políticas são acusadas de se beneficiarem de tal situação. Preso, o autor quase faleceu no cárcere vítima de problemas cardíacos que carrega historicamente. Em Natal, parte da imprensa chegou a questionar seu estado de saúde, assunto tratado de forma enfática e defensiva na obra. A despeito de tal condição, busquei no livro explicações detalhadas sobre o processo que culminou em sua detenção. Esqueça, a obra é política demais para isso!

O volume foi lançado em 2012 e tem 264 páginas. Fosse a letra convencional e a diagramação ambientalmente responsável teríamos uma obra de menos de 100 páginas. Está numa importante gôndola da mais relevante livraria do principal shopping de Natal. O tomei emprestado de uma prima. O texto é ruim, uma boa revisão irritaria menos o leitor. A letra “S”, por exemplo, abandona alguns plurais, o que faz com que sintamos que o livro foi escrito pelo cérebro maltratado de um homem que tem o coração machucado. Faustino assina a obra, mas o texto é todo na terceira pessoa. Assim, João fala de João, o que chega a forçar uma procura pelo verdadeiro autor. A ficha, no entanto, é enfática: o livro é de Ferreira Neto, ou melhor: João Faustino Ferreira Neto. Não perca tempo tentando encontrar, também, uma editora.

O título é o que mais chama a atenção: “Eu perdoo: uma reflexão sobre a nossa capacidade de perdoar”. A aparente arrogância de “perdoar” se confirma em alguns trechos do livro que mescla relatos piegas com passagens biográficas interessantes. Mas e se Faustino for mesmo inocente? O intuito maior do autor parece mais associado à tentativa de mostrar que um homem com sua biografia é inquestionável. Não devemos desconfiar daquele que se diz injustamente detido – na verdade por vezes é difícil compreender se a queixa é contra a prisão, a forma como ela ocorreu ou às acusações que lhe são dirigidas. Fácil é notar que o Ministério Público tornou-se inimigo. Ao longo das páginas sua vida vai e vem, sem linearidade cronológica, apresentando valores comuns a qualquer discurso político: família, trabalho, benfeitorias à humanidade e Deus. A mescla entre infância e vida pública lembra muito a estratégia surrada utilizada, por exemplo, no livro “O doce veneno do escorpião” de Bruna Surfistinha, que mesclava o massacre familiar com a vida de prostituta, buscando que o leitor construísse a imagem de uma vítima de sua própria vida.

Assim, por exemplo, Faustino intercala o perdão à professora que o fez apagar, às lágrimas, os escritos da carteira suja que ocupava na escola, em passagem que poderia ilustrar a novela Carrossel, com o adversário político que lhe derrotou em 1986, na busca pelo governo do Estado. Chama tal eleição de honesta e limpa, mas se contradiz ao observar que Geraldo Melo utilizou um acidente com seus próprios funcionários para capitalizar votos. O que limita a lisura numa campanha? Pergunte ao autor: no livro ele é quem tem o dom de julgar e perdoar.

Ao longo da narrativa o trecho que mais sensibiliza mostra o assassinato de seu pai por ordem de sua mãe e avó quando ainda era criança. Mas ao descrever os contatos que fez, na companhia dos irmãos, com os jurados do processo para lhes pedir que inocentassem as mandantes em nome do convívio familiar, Faustino escancara traço marcante de nossa cultura. Como dizia Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”, a família brasileira carrega o fato de se bastar em si. Ou seja, pouco importa o crime, a presença sentimental da mãe era mais relevante. Isso parece que deu certo, pelo menos no que diz respeito à união e dedicação dos três irmãos aos estudos. Faustino virou o grande homem público que relata, seu irmão mais velho seguiu brilhante carreira na aeronáutica e o mais novo se dedicou ao comércio.

E assim a obra é construída. O autor se mostra um homem de fé, que conta com orgulho a capacidade que seus religiosos prediletos têm de driblar as forças armadas com exceções. Tem a Igreja Católica ao seu lado, como se o perdão divino, em um estado laico e democrático, fosse capaz de inocentá-lo de algo que pouco nos explica. Além disso, o que não lhe falta é intimidade com homens públicos, vários dos quais ele não cita os nomes. Muitos dos acusadores e defensores não nos são apresentados. O vazio é comum: “a promotora disse estar cumprindo decisão judicial”, “escuto a frase de um respeitado companheiro político”, “o militar soubera reconhecer o absurdo cometido”. Quem são essas pessoas? O que nossos amigos e inimigos têm que a lei não possui? É isso que esperamos ao longo de toda a narrativa: defesa ou detalhes razoáveis do processo. Mas isso o autor diz que não tem, ou seja: Faustino não conhece os motivos que o levaram à cadeia. Só sabe que foi injustiçado. Como uma carreira política que revolucionou a educação no Rio Grande do Norte, criou o texto da medida provisória assinada por FHC sobre a anistia no Brasil e desafiou o presidente João Figueiredo com posição favorável às Diretas-Já pode estar envolvida em escândalos?

A despeito da resposta, que nem o autor apresenta, seu livro nos remete aos mais atuais temas da política brasileira. João Faustino transforma o processo que tentou abatê-lo em mais um FLA x FLU. Na verdade, como ele mesmo cita sem essa conotação, amigos e inimigos protagonizariam, no campo da justiça do Rio Grande do Norte, um imenso ABC x América-RN - clássico estadual que tem sido comum à série B do Campeonato Brasileiro. Na série A de nossa política o PT se defende da mesma forma. Enquanto parcelas da sociedade dizem que José Dirceu, João Paulo Cunha e José Genoíno merecem arder na cadeia, e que Joaquim Barbosa é herói, os condenados se dizem injustiçados por um julgamento político. Julgamento esse que nunca poderia, segundo os petistas, ter atingido homens que lutaram contra a ditadura. Julgamento esse que não pode respingar sobre aquele que fundou o Brasil em 2003. Que homens são esses que se dizem acima da lei? Que favores devemos àqueles que foram pagos para trabalhar por nós? Por que todos se dizem injustiçados quando a lei parece aplicada? Faustino merece ser julgado? Certamente sim. Ao menos o livro não mostra nada que nos faça crer no contrário, apenas que o autor foi um bom homem. Mas isso os petistas também pensam de seus protegidos. Por fim, fica a sugestão: o autor não precisa me perdoar se for inocentado. Eu não escrevi o livro, eu apenas fiz o que se espera de uma obra: eu a li.

* Doutor em Ciência Política (USP)