Por Fernando Bizzarro*
Não sou dado a grandes discussões
normativas. Meu negócio são variáveis, hipóteses e níveis de significância. Mas
ofereço aos colegas do Dados Políticos
uma primeira contribuição normativa e teórica. Prometo que trabalharei para que
isso não se repita muito frequentemente.
Discuto aqui o possível papel dos
partidos políticos no futuro da democracia nos países em que a crise econômica
corrói não apenas parte da liquidez do sistema financeiro (em grande medida já
recuperada), mas também o pacto social e político que tem sustentado esses
regimes. Demonstrarei como, nas condições atuais, os partidos políticos estão
em condição significativamente mais vulnerável para sustentar a democracia que
estiveram em outros momentos. Ao mesmo tempo argumentarei que os desdobramentos
da crise econômica atual dificilmente serão, do ponto de vista político,
semelhantes àqueles da crise de 1930 por uma razão simples: porque em 30, eles
não tinham a experiência do fascismo para informar-lhes. Isso me levará a uma
conclusão aparentemente otimista, mas insegura, de que ainda que a crise
desafie a democracia, o final do regime ainda está longe.
A história ensina que crises
econômicas de grande magnitude foram normalmente seguidas por profundos
processos de realinhamento político. Para termos alguns exemplos, a crise de 30
não só contribuiu para a falência da República de Weimar – impulsionada pelas
contradições institucionais do regime – como produziu, no caso dos EUA, a
coalizão do New Deal que, posteriormente, produziria o profundo realinhamento
do sul do país que hoje ainda delimita as estratégias de Obama e Romney. Na
América Latina, a crise dos anos 80 produziu o que Michal Coppedge chamaria de
um processo de “darwinismo político”, que enfraqueceu parte significativa dos
partidos governistas e impulsionou o surgimento de novos partidos e movimentos
políticos.
(Não é impossível afirmar que em
grande medida, a crise dos 80 no Brasil encerrou o modelo político baseado na
disputa Ditadura x Oposição (MDB) ao tirar o PMDB do jogo nacional, abrindo
espaço para o realinhamento de 1994 que produziria a disputa entre PT e PSDB.)
A crise contemporânea,
especialmente na Europa, ainda não produziu tal realinhamento. Provavelmente
porque ela ainda está em curso e porque ainda estamos no primeiro ciclo
eleitoral pós-crise. Nessa primeira onda, ela produziu um movimento pendular,
fazendo com que governos de direita fossem substituídos por governos de
esquerda (França) e vice-versa (Inglaterra, Espanha), ainda dentro das opções
políticas existentes no contexto pré-crise.
O que ocorre é que provavelmente
os custos sociais e políticos dessa crise não serão superados pelos novos
governos (primeiro porque não haverá tempo, segundo porque são elevados), e
também eles – eleitos para consertar a crise deixada por seus sucessores –
serão incapazes de fazê-lo. Assim, o sistema político contemporâneo será
colocado em xeque.
Na década de 30, nos países em
que a democracia resistiu ao choque econômico, os partidos políticos democráticos
eram uma potência institucional cantada em prosa e verso até hoje pelos
saudosos dos partidos de massa. Nesses contextos, eles foram capazes de
garantir por dentro da democracia a realização das tarefas institucionais
(formação de governo, seleção de candidatos) e sociais (agregação e
representação de interesses, socialização política) exigidas das instituições
políticas mesmo em uma situação de grave crise econômico-social.
A essa altura o leitor já deve
ter antecipado a pergunta que farei em seguida – e a resposta a ela. Estão os
partidos políticos atuais em condições de fazer o mesmo que seus avós do começo
do século XX? É evidente que não. A vastíssima literatura sobre a crise ou
não-crise dos partidos pode discordar em muitos pontos, mas concorda que os
partidos de hoje não são os partidos de ontem (parafraseando Schmitter). Ainda
que eu não me filie aos que enxergam os partidos como instituições fadadas a
morrer, reconheço como boa parte da literatura, que parte das funções exercidas
pelos partidos de massa não são mais realizadas pelos partidos atuais.
Retomando a divisão de funções
realizadas pelos partidos que mencionei acima (institucionais e sociais), é
certo que – como afirmam Bartolini e Mair – os partidos políticos estão muito
mais preparados e dedicados para suas tarefas institucionais que para sua
“função social”. O que decorre dessa afirmação é a dúvida de que, em um
contexto de crise econômica e social como a que nos encontramos, os partidos
“mais limitados” que temos hoje sejam capazes de garantir a continuidade da
democracia. Em um contexto em que projetos políticos, econômicos e sociais são
exigidos para lidar com os desafios que a realidade impõe, partidos eleitoral-profissional,
cartel, “de quadros modernos”, whatsoever,
estão em condições de fazê-lo?
Isso significa que eu preveja um
futuro nebuloso, dominado pela extrema-direita e pela extrema esquerda, como
ocorreu oitenta anos atrás, em que a democracia foi superada em diversos
contextos? Não, primeiro porque seria uma expectativa infundada esperar o mesmo
roteiro para duas histórias em contextos tão diferentes quanto as novas
democracias da década de 1930 e o mundo globalizado da década 2010.
Ainda que a situação de crise
econômica seja semelhante, esses oitenta anos que as separaram produziram
sociedades diferentes, marcadas por outros padrões de agregação social,
distribuição geográfica, fluxo de informação e formas de mobilização.
Segundo e principalmente porque
temos o que eles não tinham: a experiência dos regimes totalitários do século
XX, fascista e comunista, e todo o aparato, cultural e institucional que surgiu
como desdobramento dessa experiência. Vejam que com isso, não apenas reafirmo
minha convicção na percepção individual das vantagens da democracia sobre
regimes alternativos, mas sustento que há garantias institucionais que não
podem ser esquecidas que podem evitar que isso aconteça (essa ressalva eu devo
a Madison, que nos papéis federalistas nos lembra que ainda que a democracia
satisfaça os interesses individuais, a história ensinou que é sempre bom ter
instituições que a garantam).
Assim, ainda que os partidos não
sejam completamente capazes de fazer frente aos desafios que se colocam, creio
que eles podem se apoiar em instituições que com eles podem operar para
garantir a manutenção do regime democrático. Isso significa que no futuro
próximo a democracia não parece, a mim pelo menos, ameaçada. O que
evidentemente não significa que os partidos podem dormir o sono dos justos. A
recuperação – mesmo que reconfigurada – de sua função social é fundamental ao
futuro.
* Mestrando em Ciência Política (UNICAMP) e pesquisador convidado no Kellogg Institute (Universidade de Notre Dame).