sábado, 18 de outubro de 2014

O irracional político

Por Vítor Sandes*

Como diria Bertolt Brecht, “o pior analfabeto é o analfabeto político”, aquele que está alheio às questões públicas, está interessado apenas em resolver seus problemas individuais, sem saber que as questões públicas afetam diretamente suas escolhas individuais. Este tipo de indivíduo já foi exaustivamente tratado por outros e, por isso, não o discutirei nessas breves linhas. Aqui gostaria de apresentar um “tipo novo” (não tão novo, na verdade), mas que ficou bem evidenciado até este momento nas arenas de debate: o "irracional político". Para comentar sobre este tipo, vale a pena desconstruir a relação que, comumentemente, se faz entre o eleitor instruído e a boa escolha política. 

Em linhas gerais, acredita-se que os custos para se ter acesso à informação qualificada são altos, pois, na maior parte dos casos, o eleitor não tem o domínio técnico necessário para compreender relatórios e pesquisas científicas sobre os assuntos que mais lhe interessam, tais quais: educação, saúde, economia, segurança etc. Logo, os eleitores costumam realizar escolhas baseadas em atalhos: o partido e sua reputação, a ideologia que esse representa, além das mensagens reproduzidas pela rádio, jornais impressos, TV e internet. À luz dessas mensagens, analisam experiências rotineiras e constroem percepções que serão capazes de os orientar politicamente. Dessa forma, teoricamente, eleitores mais instruídos teriam maior capacidade de avaliar essas mensagens e realizar escolhas mais qualificadas, a partir da leitura dos prognósticos mais complexos. Os eleitores menos instruídos teriam essa capacidade reduzida e estariam mais propensos a realizarem escolhas baseadas em sua situação individual e imediata. Para analisar a atual conjuntura eleitoral brasileira, a aplicação desse princípio, ao pé da letra, leva a imprecisões grotescas. Por isso, vamos à prática.

Nestas eleições, estamos assistindo à disputa presidencial mais polarizada politicamente da história recente do Brasil. E essa sensação é ainda mais clara, pois o brasileiro, cada vez mais, tem utilizado seu tempo diário em frente ao computador (tablet e smartphone), navegando na internet e, consequentemente, nas redes sociais. E as pessoas têm gastado boa parte deste tempo, nas últimas semanas, ou buscando informações sobre a política ou tratando dela. Para fundamentar melhor essa afirmação, trago as informações do Google Trends. Nos dias em que ocorreram os dois debates presidenciais nesta semana, mais de 200 mil pessoas procuraram sobre o tema no Brasil. Para se ter uma base de comparação, isso representou na quinta-feira, 16 de outubro, dez vezes mais buscas do que o segundo tópico mais procurado. 

Então, a partir de uma leitura descuidada da situação descrita, poderíamos analisar o quadro da seguinte forma: o eleitor mais instruído, tendo acesso como nunca à informação disponibilizada com o uso da tecnologia, realizará a melhor escolha. Não é bem assim. Ainda que o acesso à informação seja um elemento fundamental para a realização de escolhas mais precisas, a forma como as informações são organizadas, debatidas e sintetizadas pelo eleitor também pode gerar efeitos negativos, principalmente diante da baixa qualidade da informação acessada. Segundo pesquisa do IBOPE realizada neste ano, entre os usuários de internet (cerca de metade da população brasileira), a rede social Facebook é o endereço mais acessado por mais de 63% da população. Além disso, a mesma pesquisa apontou que a regularidade no acesso à internet é diretamente proporcional ao grau de instrução e à renda, ou seja, indivíduos mais instruídos e com maior renda acessam com mais regularidade a internet e, consequentemente, utilizam mais o Facebook. Ainda na mesma pesquisa, apenas 6% dos entrevistados leem jornais diariamente e mais de 75% dos usuários nunca leem jornais e revistas. Em resumo, os brasileiros (e aqui me refiro à metade da população) se informam muito mal, apesar de terem a possibilidade de se informar melhor do que nunca, e isso tem consequências políticas graves.

Em termos daquilo que não é mensurável, é perceptível que o debate político nas redes sociais caiu em um Fla-Flu do pior tipo, em um acirramento de opiniões que beira à intolerância, e isso é extremamente negativo para a democracia, pois impede que o indivíduo se posicione publicamente por receio de retaliação. Trato aqui de um eleitor que, em sua maioria, possui grau de instrução e de renda acima da média da população, o que o tornaria apto a compreender os pressupostos básicos de uma disputa democrática. Em vez disso, não acessa as informações precisas, é mobilizado apenas pela emoção e, quando acessa, age como um irracional político, incapaz de ponderar seu posicionamento diante de novas informações e de manter suas opiniões sem oprimir o outro. O irracional político é capaz de propagar ódio nas redes sociais, transbordando-o às ruas, rodas de conversas, reuniões familiares, impossibilitando o debate político qualificado.

Como diria Rui Barbosa, “a política é a higiene dos países moralmente sadios”, por isso deve ser construída a partir do debate de ideias qualificadas, da tolerância às posições divergentes, enfim, do respeito ao outro. O benefício da boa escolha política depende da disposição do eleitor em obter informação qualificada e saber administrá-la. No grito, ninguém ganha.


* Professor de Ciência Política (UFPI). Doutorando em Ciência Política (UNICAMP).

terça-feira, 10 de junho de 2014

Embate Judiciário-Legistaltivo: quem define a dança das cadeiras?

Por Vítor Sandes* e Leon Victor de Queiroz**

O modelo proporcional, adotado pelo Brasil para a representação na Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, tem como objetivo representar, de forma mais ampla, as opiniões de grupos minoritários do eleitorado em contraposição ao modelo majoritário. No Brasil, o critério da proporcionalidade também é utilizado para determinar o número de cadeiras em disputa. Em recente decisão, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) enfrentou o Congresso e mudou o número de deputados, tendo em vista ajustar a proporcionalidade da representação na Câmara e nas Assembleias ao tamanho da população dos estados. 

Com esta decisão, quatro estados nordestinos (Alagoas, Piauí, Paraíba e Pernambuco), dois do Sul (Paraná e Rio Grande do Sul) e dois do Sudeste (Espírito Santo e Rio de Janeiro) perderam cadeiras na Câmara dos Deputados e outros cinco ganharam: Ceará, Pará, Amazonas, Minas Gerais e Santa Catarina. Certamente o imbróglio terminará com uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), decidindo se o ajuste, de fato, valerá e, em caso positivo, a partir de quando (a partir destas eleições ou somente para 2018).

O número de deputados federais por estado deve ser proporcional ao tamanho da população de cada unidade federativa, conforme o artigo 45 da Constituição Federal (CF). O cálculo das bancadas estaduais foi regulamentado pela Lei Complementar nº 78 de 1993. Ela define que os critérios se basearão na proporcionalidade da população, não ultrapassando o máximo de 70 deputados federais e nem poderá possuir número inferior a oito. Além disso, deve-se observar o máximo total de 513 deputados federais.

Já o número de deputados das Assembleias Legislativas é determinado conforme a representação estadual na Câmara dos Deputados. Conforme o artigo 27 da Constituição, essa corresponderá ao triplo da representação do Estado na Câmara dos Deputados quando for até 12 deputados. Caso haja mais de doze deputados federais, o número de estaduais será 36 acrescido do número de deputados federais acima de doze. O estado do Piauí, por exemplo, perdeu duas cadeiras na Câmara dos Deputados, passando de dez para oito, ficando com 24 deputados estaduais, seis a menos do que o número atual de parlamentares. Em Pernambuco, que detinha 25 cadeiras federais e 49 estaduais [3x12+(25-12)], caso fique com 24 cadeiras federais, contará com 48 estaduais. Ou seja, para os Estados que têm representação superior a 12 deputados federais o impacto será menor. 

Parte das reclamações dos políticos de estados prejudicados se centra na interferência do Judiciário em decisão tomada pelo Legislativo Federal. Segundo os deputados contrários à decisão do TSE, este invadiu a competência da Câmara dos Deputados ao derrubar a validade do decreto legislativo que mantinha o número de parlamentares por estado. 

Considerando os aspectos legais, a não atualização da proporcionalidade descumpre a lei complementar nº 78/1993, que incumbiu ao Tribunal Superior Eleitoral a obrigação de informar aos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) o número atualizado de vagas em disputa. Cumprindo com sua obrigação legal, o TSE informou em 9 de abril de 2013 (mais de um ano antes do pleito de 2014) o número de deputados federais, atendendo a um pedido da Assembleia Legislativa do Amazonas, cuja resposta veio em forma de Resolução. Em 28 de novembro de 2014, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de decreto legislativo sustando os efeitos da resolução do TSE. O cerne da questão é o embate entre uma Resolução de um Tribunal Superior, do Judiciário portanto, e um Decreto Legislativo que se baseia no art. 49 da Constituição Federal que estabelece ser competência exclusiva do Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo quando extrapolam o poder de regulamentar ou os limites da delegação legislativa. 

Caberá ao STF decidir se a subdelegação da Lei Complementar 78/1993 é constitucional ou não, já que o artigo 49 da Constituição determina que o número de deputados federais seja definido por Lei Complementar e não por órgão do Judiciário. A tendência da Suprema Corte é a de manter a resolução do TSE, admitindo suas competências administrativas e regulatórias em matéria eleitoral e, inclusive, entrar na questão de que caber ao Congresso definir sua composição é praticamente manter a distribuição das cadeiras inalterada. Se o Legislativo tiver essa prerrogativa, dificilmente as bancadas estaduais irão seguir a proporcionalidade e correr o risco de perder parlamentares na Câmara dos Deputados. 

* Professor de Ciência Política (UFPI) e Doutorando em Ciência Política (UNICAMP).
** Doutorando em Ciência Política (UFPE).

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Lula, a internet e as eleições de 2014

Por Bruno Souza*

Já não é mais novidade o poder que a internet possui para informar e entreter ou mesmo distorcer e deformar a realidade. Ainda em meados dos anos 1990, quando este veículo de comunicação paulatinamente deixava de pertencer a um público restrito no Brasil e começava a ter o seu uso ampliado, ninguém sabia ao certo o quanto ele poderia ser um substituto ou mesmo companheiro da televisão no dia a dia dos brasileiros. Nos últimos anos, as tão popularizadas redes sociais também ganharam o grande público, tanto de jovens quanto de adultos, sendo uma maneira de veicular informação alternativa para todos que delas participam virtualmente, mas não apenas para os usuários comuns. Para os políticos, a internet (e o uso das redes sociais) também se tornou uma poderosa ferramenta, sendo incluída como recurso para propaganda política e divulgação de ações de mandatos.

Neste assunto em especial, o ex-presidente Lula sabe muito bem a importância de aparecer bem na foto. Conhecendo o ditado popular “um olho no peixe... outro no gato”, rapidamente se deu conta de que, melhor do que apenas uma boa imagem política diante da grande imprensa e mídia televisiva, é importante contar com maneiras diversificadas de construir a própria imagem e expressar a opinião. Claro que isso não é exclusividade dele. No entanto, pode-se considerar que ele saiu na frente quando levamos em conta o vídeo publicado em sua página do facebook na quinta-feira, 30 de janeiro, no qual alerta o telespectador quanto às vantagens da internet como meio de divulgação das ideias e aprendizado pessoal, na medida em que for utilizada com responsabilidade e sem difamações gratuitas. Em outros termos, Lula atenta para o papel da internet como ferramenta que contribui no processo de formação da opinião pública. Seria então apenas um vídeo para alertar os indivíduos sobre como formam suas impressões políticas e expressam suas opiniões virtualmente? Talvez seja ingenuidade demais.

Em ano eleitoral, até as piscadelas e acenos de “até logo” são milimetricamente planejados e elaborados pelas equipes de marketing político e assessorias de comunicação dos partidos. Já nas eleições presidenciais anteriores, PT e PSDB haviam escalado verdadeiras equipes para acompanhar pronunciamentos do candidato rival, retrucar agressões virtuais e despejar na rede os bons feitos de seus políticos com o intuito de equilibrar a informação que chegava aos usuários comuns. Sabemos que a prática, sem dúvidas, almeja chegar à perfeição. Mal começou o ano e novamente os partidos estão canalizando parte de seus recursos e atenção às redes sociais, principalmente para o twitter e o facebook. O serviço sem dúvida se profissionaliza a cada pleito: geração de relatórios, monitoramento constante, contratação de profissionais qualificados e elaboração de uma ação de defesa ou ataque a cada informação ou sátira publicada por um dos lados. Poderia se chamar “guerra virtual”, mas é campanha eleitoral mesmo.

Lembro-me que recentemente assisti ao filme “No” dirigido por Pablo Larraín, no qual se procura mostrar a disputa publicitária ocorrida no Chile em 1988 em meio à campanha que antecedeu o plebiscito popular no país que votaria pela continuidade ou não de Pinochet no poder. O personagem principal no filme, o publicitário René Saavedra, foi interpretado por Gael García Bernal, que com inteligência, coragem e astúcia consegue organizar com poucos recursos, e resistindo às forças de repressão governamental, uma fantástica e moderna campanha televisiva pelo “no”, marcada por uma linguagem simples e leve.

É claro que o ambiente no qual se dão as disputas eleitorais no Brasil é democrático e que assegura a pluralidade de opiniões e posicionamentos políticos. Contudo, a linguagem direta, as frases precisas e o sorriso de vencedor não aparecerão apenas no horário eleitoral gratuito que será transmitido pelo rádio e tevê a partir de 19 de agosto. Pela internet é que a campanha não para: seja de manhã ou de madrugada, as notícias não deixarão de ser veiculadas e as fotos com montagens dos mais diversos tipos serão curtidas e compartilhadas em velocidade instantânea. A disputa política nunca dorme nesta nova era digital. Se em 1988, a publicidade já adquiria papel fundamental em uma campanha, imagina em 2014, tendo ainda mais meios de comunicação à disposição. Pois é, Lula realmente saiu à frente.

* Doutorando em Ciência Política (UNICAMP) e Membro do Laboratório de Política e Governo (UNESP/Araraquara) . 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Novas instâncias de mediação e seus desafios: o Conselho Participativo Municipal de São Paulo

Por Rony Coelho*

No dia 08 de dezembro de 2013, houve a eleição do Conselho Participativo Municipal (CPM) de São Paulo. A posse ocorreu no sábado, 25 de janeiro, dia em que a maior cidade do país, com aproximadamente 11 milhões de habitantes, completou 460 anos. Para muitos, dos mais distintos espectros políticos, esse tipo de eleição e de mecanismo não passam de um placebo, de um engodo. Embora não corresponda às nossas expectativas (e o que, em se tratando de política, de fato corresponde não é mesmo?) e ainda esteja muito longe de qualquer ideal, parece interessante destacar alguns apontamentos sobre o processo de criação e eleição do conselho.

1. O referido Conselho estava previsto, desde 1990, na lei orgânica do município e nunca havia saído do papel. Essa será sua primeira gestão. É válido lembrar que os conselhos no Brasil foram concebidos por diversos movimentos sociais e segmentos voltados a causas populares no decorrer das décadas de 1970-80 na luta pela redemocratização do país.

2. Trata-se de um conselho consultivo, isto é, não tem poder de decisão. Todavia, este é um órgão reconhecido pelo poder público e dentre as atribuições dos conselheiros, que exercerão mandato não remunerado (voluntário) por dois anos, está a de acompanhar e de fiscalizar a execução do Orçamento e do Plano de Metas no âmbito do território das subprefeituras, bem como a evolução dos indicadores de desempenho dos serviços públicos regionais. Os conselheiros também terão autonomia para obter informações oficiais e contestar atos da gestão nas subprefeituras, além de poder convocar o próprio prefeito para prestar esclarecimentos. O CPM ainda participará da definição das obras a serem executadas pelas subprefeituras, além de indicar um conselheiro de cada distrito para compor o futuro Conselho de Planejamento e Orçamento Participativo.

3. As eleições para o CPM ocorreram nas 32 subprefeituras da cidade, das quais fazem partes os 96 distritos municipais. O Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP) forneceu urnas eletrônicas e suporte técnico para sua realização. Cada subprefeitura elegeu determinado número de conselheiros (entre o mínimo de 19 e o máximo de 51), por distrito, de acordo com a distribuição geográfica da população. Por exemplo, no distrito de Grajaú, subprefeitura de Socorro, elegeu-se 30 conselheiros, ao passo que nos distritos do Butantã e do Morumbi, subprefeitura do Butantã, elegeu-se 5 conselheiros em cada um deles. Na média, foi eleito um representante para cada 10 mil cidadãos. No total, foram eleitos 1.113 conselheiros divididos proporcionalmente em cada região. Vale registrar, de modo ilustrativo, que em São Paulo são eleitos 55 vereadores, aproximadamente um para cada 200 mil cidadãos.

4. Aproximadamente 120 mil eleitores, 1,4% do total (8,6 milhões), compareceram às urnas. Poderiam votar todos aqueles regularizados com a justiça eleitoral. Com o voto facultativo e secreto, cada cidadão poderia votar em até cinco candidatos. Sendo assim, foram computados aproximadamente 600 mil votos. Para alguns, especialmente para os próprios organizadores do pleito e mesmo para alguns “especialistas”, houve “baixa adesão” ou “participação”. Cabem as questões: baixa comparada ao que? Às nossas expectativas ou às tradicionais eleições obrigatórias? O que de fato representa a participação voluntária de 120 mil pessoas num pleito para escolher conselheiros?

5. Como atestado por vários meios de comunicação e mesmo por candidatos e eleitores, houve falta de divulgação. Além desse problema, muitos eleitores foram designados a votar em escolas situadas em outras subprefeituras que não as da área de suas residências. Esses fatores certamente prejudicaram a eleição. Nesse mesmo sentido, outro fator a ser elencado é que houve mudanças de regras no meio do processo. Inicialmente os eleitores votariam apenas em candidatos dos seus próprios distritos. Posteriormente, estabeleceu-se que se poderia votar em até cinco candidatos da subprefeitura. No final, após outra alteração, os eleitores puderam votar em candidatos de quaisquer subprefeituras. A prefeitura de São Paulo justificou tais mudanças alegando que estaria seguindo orientações do TRE-SP. A oposição ao governo da capital (PSDB e PPS) entrou com pedido de anulação do pleito por entender que isso a prejudicaria. Note que se questiona a mudança de regras e não o conselho em si. Isso sugere que mesmo a oposição reconhece publicamente o órgão criado. Na verdade, o Conselho, que já estava previsto na lei orgânica do município, originou-se a partir de uma emenda de um vereador da própria oposição (PSD) proposto pouco antes das manifestações de junho. Em 1º de agosto foi lançado por Haddad.

6. O número de candidatos ao conselho foi de 2.855. Em todos os distritos, o número de candidatos foi maior do que o de vagas. Nos bairros da periferia, a média candidato/vaga foi maior do que nos bairros da região central. A subprefeitura com mais candidatos inscritos, por exemplo, foi a de M'Boi Mirim (zona sul), com 154 interessados (aproximadamente de três candidatos por vaga). Como pré-requisito para candidatar-se, o interessado deveria comprovar representatividade por meio da apresentação de uma lista com no mínimo 100 assinaturas de apoiadores; não ocupar cargo no poder público; e não ter mandato político nas esferas municipal, estadual ou federal.

7. Após a eleição, o jornal O Estado de São Paulo destacou que candidatos do PT tiveram maior votação em quase metade dos conselhos (43%). E que “dos 96 primeiros colocados no domingo, 41 são filiados ao partido do prefeito”. Apenas quatro entre esses são do PSDB. Aparentemente, esses números isolados, isto é, sem estar inseridos em seu universo, não dizem quase nada. O jornal contribuiria mais se nos informasse quantos foram os filiados eleitos para as 1.113 vagas disponíveis. Ainda não tivemos acesso a estes dados. Mas mesmo em posse deles, uma vez que não estamos levando em conta a trajetória dos candidatos, caberia questionar se há algo de espúrio nessa prática. Enfim, esse não é um questionamento ingênuo. Melhor do que se deixar levar por uma possível manipulação dos números. Mas, além do que informou o jornal, sabemos também que foram eleitos, por exemplo, quatro militantes da Associação dos Trabalhadores Sem Teto da Zona Oeste e Noroeste, que promoveu, em 2013, protestos contra o governador paulista, Geraldo Alckmin (PSDB), e contra Haddad (PT), nos primeiros meses de sua gestão. A candidata que obteve maior votação entre todos é uma liderança do movimento sem-teto. Na verdade, com uma simples consulta na internet é possível perceber que o universo de candidatos foi bastante heterogêneo, embora ainda não seja possível saber de forma precisa o perfil dos eleitos. Havia candidatos de diversas pastorais (da saúde, da fé e política etc.), de diversas associações comunitárias e de moradores (associação colina de São Francisco e Amovilas, o líder comunitário do Parque Cocaia), candidatos ligados à Agenda 21; além de outros de diversos movimentos: Movimento Boa Praça, Instituto Kairós; militantes da cultura, etc. Também se percebe vários candidatos com formação de nível superior em diversas áreas, inclusive, por exemplo, com mestrado na FAU-USP.

Essas são apenas algumas notas que têm o intuito de dar uma dimensão da complexidade do processo e permita um olhar mais ponderado sobre ele. Mas, para alguns, como disparou, por exemplo, Waldemar Rossi : “todos esses ‘ingredientes políticos’ (para ele especialmente os do ponto 5) transformam os futuros Conselhos Participativos em meros prolongamentos de políticos tradicionais, particularmente de vereadores mancomunados com o poder”. Isso pode até ser verdade, em parte. No jogo político, o risco de aparelhamento quase sempre é real e – diga-se de passagem – em quase toda e qualquer situação. Mas, quem sabe, não pode ser verossímil também que estejamos diante de um processo (dialético, lento, com idas e vindas, com avanços e retrocessos) de formação de novas instâncias de mediação, de representação, com os desafios de lidar com todos os meandros e facetas da política, conforme chama atenção também Raquel Rolnik?

Vale lembrar, como fora veiculado também pelo blog do Luis Nassif, que provavelmente em nenhum lugar do mundo houve eleições como essas, com as virtudes e os vícios que disso possa decorrer. À propósito, como fora ressaltado em outro post deste autor neste blog - e o que é destacado por diversos especialistas, embora não se reconheça enquanto senso comum - em nenhum lugar há um cenário como o do Brasil no que diz respeito à configuração do que podemos chamar de instituições participativas (conselhos, orçamentos participativos, conferências nacionais, comissão de legislação participativa etc.). Assim, antes de jogar fora o bebê junto com a água do banho, talvez seja mais prudente atentar aos desafios que a democracia brasileira nos coloca.

* Doutorando em Ciência Política da UNICAMP.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Habemus planum: considerações políticas, tecnológicas e econômicas sobre a escolha do Gripen

Por Antônio Henrique Lucena Silva*

Desde o início da competição do Programa FX-2, o caça Gripen foi preferido pela corrente majoritária da Força Aérea Brasileira (FAB). Aeronave de excelente performance e de baixo custo de manutenção ele se adequa aos parcos recursos que as forças armadas possuem para se manter. Em conversas com militares das três armas sobre o processo de escolha do caça, no Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, e nas Escolas (EGN – Escola de Guerra Naval, UNIFA – Universidade da Força Aérea e ECEME – Escola de Comando e Estado-Maior do Exército), identifiquei três correntes de defensores de cada avião concorrente. Uma delas defendia a manutenção da continuidade doutrinária francesa: a Força Aérea utilizou os Mirage III, Mirage 2000 e o Rafale seria uma opção natural. Operamos o porta-aviões São Paulo (ex-Foch, da Marinha Francesa) que possui capacidade de emprego dos Rafale. Nesse sentido, a opção pelo caça francês era óbvia. Outra corrente, essa que pode ser classificada de “pragmática”, defendia os F-18 Super Hornet. Para esses militares, não existe transferência efetiva de tecnologia e possuir uma aeronave americana, com bom histórico de uso em guerras, seria benéfico para a Força Aérea. A terceira corrente pode ser classificada como “desenvolvimentista”. Os suecos ofereciam uma parceria no Gripen NG. Dentro dos marcos da Estratégia Nacional de Defesa (END, publicada em 2008) e do Livro Branco de Defesa Nacional (2012), o avião sueco é o que se adequa às nossas necessidades de elevar a indústria de defesa do Brasil a um novo patamar. Toda transferência internacional de armas é uma associação de longo prazo entre país comprador e fornecedor do material bélico. Assim, não apenas questões de cunho operacional/tático são levadas em consideração.

Politicamente, a compra do caça F-18 da americana Boeing, preferido por alguns militares por ser sucesso em combate em várias guerras e farta experiência de desenvolvimento, ficou inviável após os escândalos de espionagem da NSA. O fato da própria Presidente Dilma Rousseff e companhias brasileiras como a Petrobras terem sido alvo da espionagem prejudicaram a escolha do avião, cuja vitória estava prevista para ser anunciada na visita de Estado da Presidente a Washington, posteriormente cancelada devido aos escândalos. Além do mais, deve ter em mente que a Estratégia Nacional de Defesa considera que toda a "compra" de material bélico será uma "parceria". Nesse sentido, a Boeing não seria a melhor candidata pelo histórico de cerceamento tecnológico que o governo americano faz ao nosso país. O próprio programa CBERS (satélites de análise de recursos terrestres), em parceria com a China, sofreu vários atrasos no seu desenvolvimento porque o ITAR (International Traffic in Arms Regulations), órgão americano, vetou a venda que componentes para os satélites, obrigando Brasil e China a desenvolverem esses componentes. A FAB ficou irritada também porque houve outro episódio de cerceamento no caso do míssil MAR-1 (anti-radiação, arma importante para destruir radares) fazendo com que os pesquisadores da arma desenvolvessem um novo sistema para o seeker. No passado, os americanos vetaram a venda de equipamento brasileiro devido a interesses comerciais e políticos. Dois eventos são dignos de nota: o primeiro ocorreu com o carro de combate Osório, fabricado pela Engesa, era ofertado para a Arábia Saudita. Tendo se saído melhor em testes no deserto para a monarquia daquele país, o Osório superou o Abrams (EUA) e seus concorrentes AMX (França) e Challenger (Reino Unido). O ataque político estadunidense inviabilizou a compra e, afundada em dívidas, a Engesa faliu. O segundo, mais recente, foi o veto à venda de Super Tucanos à Venezuela em 2005. A escolha do avião de contra-insurgência da Embraer pelos Estados Unidos em 2013, para equipar a Força Aérea Afegã, representou um novo marco que sinalizaria em novas relações militares internacionais com os americanos, mas que foi anulada em seguida pela espionagem acima mencionada.

O Rafale é o avião mais "independente" em termos de tecnologia, porque é quase todo fabricado na França. Por outro lado, é um avião muito caro de ser mantido, com custos proibitivos de aquisição. A aeronave, que teve muitos problemas no seu desenvolvimento, foi diminuindo as dificuldades táticas e operacionais na guerra do Afeganistão e, mais recentemente, na Líbia. A cooperação com a França é de longa data, que inclui os Mirages adquiridos na década de 1970 (os países latino-americanos sofreram embargos de armas pelo Presidente Jimmy Carter, por isso os equipamentos franceses foram uma opção), os submarinos e a compra de helicópteros EC-725 de transporte para as três armas. A escolha do Rafale poderia aprofundar a dependência francesa o que, em termos estratégicos, pode não ser bom. As lições da Guerra das Malvinas (1982), quando a França interrompeu a entrega de aeronaves Super Étendard e mísseis Exocet para a Argentina, por ordem de Margaret Thatcher, ainda continuam vivas. O Brasil também se irritou com a França porque ela obstaculizou a eleição de Roberto Azevedo para a OMC demonstrando limites da parceria estratégica entre os países.

A Suécia tem se revelado um novo aliado estratégico de peso. Criou o centro de pesquisa sueco-brasileiro para desenvolvimento de tecnologias, além de oferecer o Gripen como um "parceiro" de desenvolvimento. Proposta interessante para a nossa indústria de defesa e no ganho de autonomia de aeronaves de caça. Convém ressaltar que o Gripen é bem avaliado pela República Tcheca, Tailândia, Suécia, Empire Test Pilots (Reino Unido) e África do Sul. Esta última têm ressaltado as vantagens de cooperação com os suecos e que os acordos de transferência de know-how tem sido bem sucedidos. O míssil A-Darter (ar-ar de 5ª geração) que entrará em serviço, fruto da cooperação tecnológica Brasil-África do Sul, será equipado nos Gripens sul-africanos, o que facilita a integração com o Gripen brasileiro. Embraer e SAAB, que vão cooperar na fabricação do caça, têm congruência na política de integração de sistemas nos seus produtos. O desenvolvimento do avião de ataque AMX por Brasil e Itália, na década de 1980 e em operação na FAB, é um exemplo de parcerias internacionais que trouxeram frutos para a indústria do País. No mais, a escolha do avião depois de tanto tempo é importante para a retomada da operacionalidade da FAB. Atenta a esse processo, a Suécia deverá fazer um leasing de caças da sua Real Força Aérea para o Brasil até que os nossos cheguem, a partir de 2018, para garantir a defesa aérea do Brasil durante a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Por ser uma aeronave dentro dos padrões da OTAN, o Gripen facilitará ao Brasil a participação em operações aéreas conjuntas. Um dos pontos contrários ao avião é que ele utiliza muitos componentes estrangeiros, como o motor, que é da General Eletric (empresa americana). Por outro lado, é importante frisar que a cadeia de fornecimento da indústria global de defesa é horizontalizada, ou seja, é praticamente impossível um aeronave que não tenha, pelo menos, alguns componentes estrangeiros.

Com a decisão da compra dos caças, Dilma Rousseff agrada aos militares e diminui o mal estar de alguns atritos ocorridos com os militares. Episódios como que causaram irritação na caserna como a Comissão da Verdade, classificada como tendenciosa, porque não investigaria os crimes da “esquerda” e o caso Dalton. Com a escolha do Gripen NG para a FAB, Rousseff e Amorim sinalizam que possíveis divergências se encontram no passado e, para a Presidente, em particular, que a Defesa Nacional será um tema de Estado.

* Doutorando em Ciência Política/Estudos Estratégicos (UFF).