terça-feira, 4 de junho de 2013

A trajetória dependente da reforma institucional do subsetor portuário brasileiro

Por Raphael Machado*

Os gargalos da infraestrutura econômica logística no Brasil são velhos conhecidos há anos, seja por aqueles que produzem, consomem ou mesmo exportam a produção nacional. É no intuito de reduzir esses gargalos que o Governo Federal vem atuando nos últimos anos com a criação de vários programas voltados ao atendimento da infraestrutura logística nacional. As inúmeras tentativas de reformas do setor sempre esbarraram em empecilhos jurídicos e disputas entre importantes atores e coalizões do setor. Os principais subsetores afetados por esses gargalos são o ferroviário e o aquaviário. No caso do setor ferroviário, a recente aprovação do direito de passagem, no qual um operador independente pode passar na malha concedida a outro operador, visou eliminar monopólios e baratear o custo do frete naquele modal. Quanto ao subsetor aquaviário, a recente discussão sobre a Medida Provisória dos Portos (MP 595/2012) é mais um capítulo da política das reformas institucionais do setor logístico, o qual sofreu inúmeras pressões por parte dos atuais concessionários de terminais portuários, futuros licitantes e, não menos importante, os sindicatos dos trabalhadores portuários.

Os portos no Brasil, até 1990, eram marcados pela centralização da administração no Governo Federal, com a existência de uma empresa holding (a PORTOBRÁS) controlando a gestão dos portos públicos que os explorava por meio de subsidiárias, as Companhias Docas, empresas públicas que atuavam mediante autorização do Ministério dos Transportes, assumindo o papel de autoridade portuária nos portos sob sua jurisdição. Havia o monopólio público na execução da operação de movimentação e armazenagem de mercadorias e o monopólio dos sindicatos de trabalhadores na administração da força de trabalho “avulsa”. Os terminais de uso privativo já existiam, porém, a eles era permitida apenas a movimentação de cargas próprias. Nessa configuração institucional um ator alçado em sua relação de poder foi o sindicalismo portuário que, por meio da legislação introduzida entre as décadas de 1930 e 1940, concedeu a eles dupla função: de representantes dos interesses da categoria, como também de gestores da força de trabalho. Isso deu ao sindicalismo portuário força e poder de barganha dificilmente encontrados em outros setores da economia, tal como os petroleiros ou mesmo o sindicalismo do setor público. 

Com a extinção da PORTOBRÁS, logo após a posse de Fernando Collor de Mello (1990), iniciou-se um processo de confusão administrativa e rápida deterioração das estruturas portuárias brasileiras. As mudanças no subsetor portuário consolidaram-se apenas a partir da promulgação da chamada Lei de Modernização dos Portos, a Lei 8.630/1993. Essa lei foi resultado de um conflituoso processo político gestado por um poderoso lobby empresarial, um grupo chamado Ação Empresarial Integrada, que incluía tais atores. A resultante desse processo foi a possibilidade de a União conceder à iniciativa privada a exploração de portos públicos; a desvinculação da operação portuária da administração pública do porto, possibilitando a contratação de força de trabalho diretamente por operadores privados, porém, regulada pelos Órgãos de Gestão de Mão de Obra do Trabalho Portuário (OGMO); arrendamento de terminais dentro do porto público para a iniciativa privada, permitindo a competição entre terminais em um mesmo porto; quebra do monopólio dos sindicatos de trabalhadores no fornecimento e escalação da mão de obra. Esse processo foi bastante conturbado, sendo que empresários interessados em reduzir custos ativaram seus influentes canais de lobby junto a setores dos poderes Legislativo e Executivo, favorecendo suas reivindicações, assim como os trabalhadores, que fizeram forte uso das greves para tentar barrar medidas que não agradaram a categoria. 

A conturbada trajetória que resultou na aprovação da MP dos Portos pelo Congresso no dia 16 de maio é, em ampla medida, dependente do processo de reforma da década de 1990, cujos canais de influência do empresariado e dos trabalhadores junto aos poderes Executivo e Legislativo ainda permanecem ativos e foram auto-reforçados ao longo do tempo, aumentando o poder de barganha desses atores. 

A principal oposição à MP 595/2012 foi dos atuais operadores privados com concessionários de portos públicos, cuja fatia de mercado foi frontalmente ameaçada pela redação da MP, que os obriga a movimentar a carga de terceiros e também oferecer menores tarifas em relação à maior quantidade de toneladas movimentada, principal inovação da medida frente à legislação de 1993. Esses operadores conseguiram colocar suas pautas de maneira contundente, sem que o Governo conseguisse muita margem de manobra para contorná-las. Isso é evidente em relação à emenda parlamentar que possibilita os operadores privados arrendatários de terminais públicos obterem mais dez anos para a execução de suas funções, sem precedência de um mecanismo de concorrência pública para a concessão de tal atividade. Essa emenda está sendo considerada problemática pelo Planalto, uma vez que pode gerar fortes questionamentos jurídicos em futuras concessões.

Talvez a maior novidade desse processo de reforma tenha sido a participação ativa do setor sindical na aprovação da MP 595/2012, cujo impacto sobre os direitos dos trabalhadores portuários é evidente, representando uma clara flexibilização das conquistas trabalhistas do subsetor. O embate entre Central Única dos Trabalhadores (CUT), coligada a outras centrais, e a Força Sindical, nos bastidores do Congresso, é indício de antigas rusgas entre as centrais, e que representou o isolamento do deputado Paulo Pereira da Silva (PDT-SP), líder da Força Sindical, em sua postura contrária a contratação de trabalhadores fora dos OGMOs. O sindicalismo como um importante ator de veto das reformas no subsetor portuário dessa vez teve sua atuação fortemente marcada em apoio ao Governo Federal, não resultando em greves ou paralisações que prejudicassem o escoamento da safra desse ano.

A trajetória da reforma institucional do subsetor portuário é dependente, deitando suas raízes em processos longos, com mais de 20 anos de desenvolvimento, reforçando canais de lobby e acentuando a participação ativa de diversos setores sociais no interior do Congresso para a aprovação da MP dos Portos. 

A batalha política em torno da reestruturação do setor de infraestrutura econômica logística no Brasil está apenas começando, quebrando monopólios de operadores públicos e privados em concessões mal projetadas de duas décadas atrás. Afirmar que as reformas institucionais são resultantes de trajetórias dependentes não significa afirmar que seu resultado já é conhecido, muito pelo contrário, existem evidências das principais coalizões em torno dos eixos centrais das reformas, porém, as contingências do processo político são muito maiores do que os próprios atores.

* Doutorando em Ciência Política (UNICAMP).

3 comentários:

  1. Raphael, Vi sua postagem no FB e vim aqui ler. Parabéns pelo texto. Eu queria só colocar uma pimenta no debate. Especialmente no conceito central do seu texto que é a ideia de uma trajetória dependente. Bom, tenho uma relativa dificuldade em lidar com esse conceito/ferramenta. Acho que não só eu! Bom, mas meu ponto é: o que delineia essa dependência da trajetória? São fatores culturais, econômicos, institucionais, ou o que? Pela análise a abertura dos portos pelo Collor proporcionou um espaço maior de lobbies dos empresários e um enfraquecimento dos trabalhadores. Tudo bem. Mas a questão é: será que esse não seria um resultado do próprio movimento de abertura do Estado? O meu medo no fim é chegarmos a seguinte conclusão: o Estado já não é mais o mesmo, o neoliberalismo (na falta de nome melhor!) deixou suas marcas, então vamos nos render porque a trajetória de dependência já está traçada. Ou não?

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    1. Anderson, obrigado pelas questões. Elas permitem apontar um ou dois pontos acerca da trajetória dependente. É difícil afirmar a existência de apenas uma causalidade que delineie uma trajetória dependente, o que acontece é uma multicausalidade, que nesse meio gera variáveis intervenientes. No caso específico do desenvolvimento da regulação do setor portuário brasileiro existiam fortes pressões econômicas e políticas por parte de empresários, trabalhadores e a própria burocracia estatal que gerou arranjos institucionais duráveis, no caso, os canais de ligação entre empresários e trabalhadores junto aos poderes Executivo e Legislativo. Uma conjuntura crítica, na qual o poder discricionário da agência é elevado em relação ao da estrutura, engatilha um movimento em uma trajetória particular, tendo como base um arranjo de forças minimamente coerentes que sustentem o movimento ao logo do tempo. Claro que essa discussão remete à tese do equilíbrio institucional, mas o ponto central não é o equilíbrio e sim os efeitos de interação de sequências temporais e sua convergência em consequências substanciais. Creio que a discussão sobre trajetória dependente não feche as portas para a discussão sobre a abertura do Estado, pois o passado não determina de maneira linear o desenvolvimento do processo político, sendo que esse é resultante das próprias contingências da política. A incrementalidade nos processos de trajetória dependente é um elemento importante, caso contrário o sindicalismo, na MP dos Portos, estaria fadado a fazer greves e ser contrário à retirada de direitos trabalhistas dos trabalhadores portuários. Acho que uma das principais forças analíticas da abordagem de trajetória dependente está em seu ajuste para dar fortes conclusões sobre quanto de incremento numa causa particular irá afetar o resultado.

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  2. Raphael, parabéns pela análise e, principalmente, pela resposta à provocação bem colocada por Anderson. Esse não é um assunto que costuma ser tratado com profundidade, até mesmo no âmbito acadêmico, principalmente pelo enfoque político. Estudo e pesquiso o tema sobre política portuária desde 2009, embora já tenha tido acesso a bibliografia que aponta a importância dos sindicatos nas negociações da Lei dos portos, não tive acesso a dados e informações ou até mesmo estudos que trate o tema sob à ótica da ciência política como você pontuou na sua análise. Talvez tenha me faltado uma pesquisa bibliográfica mais contundente. Teria como você me passar seu contato?

    De qualquer forma também já proponho algumas questões para o debate: Qual seria a relevância dos interesses geopolíticos nacionais e internacionais nessa trajetória dependente? Como seria o comportamento desses grupos de interesse consolidados no processo decisório de política portuária frente às inovações institucionais no licenciamento ambiental para a construção e ampliação dos portos, que, hipoteticamente, teria ampliado a participação da "sociedade civil"?

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